O sábio e o ingênuo 2:
ou o que há de novo sob o céu?

 Francisco Grijó

1 Pois então o sábio e o ingênuo continuam juntos. Não se seguram longe um do outro - é uma convivência que mantém acesa a inveja de muita gente. Algo como Holmes e Watson, como Rodgers & Hart. Vejo-os de longe, observo as passadas que são fruto de pausado treino. Tento acompanhar-lhes a disposição, mas os lipídeos e a nicotina impedem. Em vinte minutos estaremos juntos e há um sorriso em mim porque, além do prazer de revê-los, vamos conversar. Não é um sábado, como da outra vez, mas um dia aquecido pelo movimento de muitos ônibus e gente cheia de compromissos. É meio de semana, quarta-feira de um junho que confunde a meteorologia. Uma chuva forte prevista, e até agora o sol incomoda a todos. Menos, é claro, ao sábio, alheio ao que proclama a tecnologia.

2 Em nosso último encontro o sábio teve as vísceras reviradas por eu insistir em que Nelson Rodrigues era tão importante para a literatura brasileira quanto Machado de Assis. Penso que a Literatura não sabia disso - ou, por outra: pensava. Nelson Rodrigues, antes a desgraçada Besta Fera, é hoje um saboroso e interminável quindim na boca de oito entre dez intelectuais da cidade. A culpa reside num ótimo texto biográfico e no relançamento de toda a sua obra, incluindo os romances e crônicas. Isso eu não profetizei. Essa gripe rodrigueana não convenceu o sábio e ele certamente sugeriu que o ingênuo se imunizasse.

3 Finalmente chego até eles - há os cumprimentos, uma quase reserva por parte do sábio; extenso sorriso do ingênuo, meus tapinhas nas costas de cada um. Gosto deles. É pena que não os veja sempre. O sábio, dono de uma contida avidez que quer esconder, pergunta-me sobre os livros que trago comigo. É claro que vamos conversar sobre literatura. Gosto de ouvir o sábio, embora nem sempre concorde com ele. Quanto ao ingênuo, muito aprecio sua aquiescência quanto aos fonemas magnificamente bem articulados de seu amigo. São mais que uma dupla.

4 Os livros que trago são dois: pouco mais de cento e trinta páginas, se juntos. Um, novela de parágrafo único e pequeno show de hipérbatos, tem o estranho título de Aninhanha. Autor: Pedro J. Nunes, a quem não conheço, mas me pareceu, pela foto na terceira capa, um artista de futuro que promete. Tem a face magra dos grandes criadores, daqueles que veem mais valia nas palavras que nas vitaminas. O outro livro, de autor que também não conheço, é Hardcore blues, de Orlando Lopes, estudante talentoso. São poemas que me lembraram, à primeira leitura e consideradas as proporções, uma nervosa erupção do Kilauea. Gostei muito de ambos os livros.

5 O sábio, embora educado à Genebra, é deselegante ao me questionar sobre se sou a pessoa mais indicada para comentar livros. O ingênuo faz o mesmo, mas silenciosamente. É claro que minha erudição é algo pífio: Não li Björnson, Sterne ou Musil. E não ouvi falar de Hogg, Oliecha, Sarbievski. São nomes que o sábio pronuncia com a mesma intimidade que uma criança diz quero ou mamãe. Sei que o sábio leu quase tudo e quer ler mais. Sei também que o ingênuo é todo vibração quando o sábio solta rápidas informações sobre a literatura produzida no Sudão.

6 Vamos aos fatos, os meus, e é o que digo ao sábio: como quase todos os que apreciam literatura, o que se produz no Espírito Santos lhes é desconhecido. Não tenho os porquês, respondo rapidamente ao ingênuo. Talvez preconceito - o Espírito Santo é um estado que nos traz, de imediato, imagens de Roberto Carlos e panelas de barro. Com moquecas dentro. O sábio concorda e não me surpreende quando diz que teve acesso a bons textos produzidos por aqui. Concordamos, ambos, enquanto o ingênuo, interessadíssimo, folheia Hardcore blues.

7 É claro que não pretendo analisar a obra, mesmo porque, além de mínimo o tempo, em silêncio dou certa razão ao sábio: não sou dos mais indicados a teorizar sobre uma obra literária. Apenas leio, tenho interesse. Só não possuo a velocidade do sábio. O que me impressiona no texto de Orlando Lopes, o texto poético, é o êxito na primeira tentativa. Eis o que quero dizer: o autor conseguiu, de bate-pronto, estabelecer um diálogo de muitos frutos entre a literatura, a fotografia e a música. Algo que Baudelaire fez - por favor, digo ao sábio, deixe-me terminar! - e Bob Dylan, em Tarântula, tentou, mas não conseguiu. Rogo que o sábio esqueça o Decadentismo, as flores e o mal. Insisto que pense na Teoria das Correspondências, o fértil casamento entre as várias artes. O ingênuo diz ah bom!

8 Não há um poema longo. Ao contrário: o autor sabe que a realidade é a fragmentação, o flash, a foto. Sabe que o poema, antes de narrar acontecimentos, serve aos caprichos do instantâneo - mostra o que de imensamente absurdo ou paradisíaco acontece num microssegundo. É feroz e terrível como o são o átomo ou o ano-luz. E Orlando Lopes, através de seu Hardcore blues, sabe disso. Faz do poema seu caminho de ida, sua tour de force para o que virá mais tarde: certamente outros poemas, outro livro. O sábio se interessa, mas faz muxoxo da capa, da epígrafe e da dedicatória, cheia de números, para os quais o ingênuo envia olhares de enigma. Mas o sábio entra no texto com as sobrancelhas erguidas, como se houvesse surpresa. Após o primeiro poema, é um lobo: "Isso já foi feito!" É claro que sim, é claro que os poemas de pés fincados no blues rock e naquilo a que chamam apelo desesperado pelo fim do mundo já foi feito. Claro que já - mas nem todos, repito, obtiveram êxito ao mesclar, tão balanceadamente, amor, desespero, música e onomatopeias. Tudo isso regido por um deboche de cortar um bispo em fatias. O ingênuo se antecipa, perguntando se o deboche é a melhor forma de ataque. Ao contrário, digo. O deboche é defesa. Defesa contra essa nossa pieguice quotidiana, contra a poesia de uniforme escolar ou aquela artificialmente produzida à base de citações e se escondendo sob o guarda-chuva estéril da pós-modernidade. O sábio, penso, concorda comigo. Após um ano, sinto que ele me acha senhor de afirmações mais maduras.

9 Não estamos na livraria. O sábio a prefere aos sábados. O ingênuo também. O sábio, num repente, após três poemas que leu em rapidez de Hermes, pontua que há algo de Corbière, um tanto de Roberto Piva, um pequeno quê de iconoclastia e muito de beatnik. Isso não desmerece o texto, ele diz. E continua: vejo que ele usa bem os estrangeirismos e faz o sexo e a dor nos parecerem algo muito comum, como nossas cáries, por exemplo. O ingênuo levita, está em êxtase. Não cheguei a tanto, mas gostei do que disse o sábio. Sinto que ele, o sábio, quer ler mais, interessou-se. Acho melhor que o leia por completo, de uma tacada, sugiro. É ler pra crer. Ao final desta conversa, o livro Hardcore blues será um presente a ele.

10 Outro mérito de Hardcore blues é sua forma, tão desgastada pela modernidade, mas retomada como fúria através de versos que são curtos em suas sílabas e prolongados em sua pronúncia. Isso sem entrar na perigosíssima área da linguística, onde a combinação mais-que-perfeita entre significante/significado, quando alcançada - e penso que é o que acontece em boa parte destes poemas -, transforma o texto em literatura de estado puro, fundamental. Não é exagero, digo ao ingênuo, antes mesmo de ele perguntar.

11 É texto de estreia de Orlando Lopes, e nada mais digo, concluo. O sábio, resistente, me pergunta se não há certa arrogância no texto. Não é disso que se faz a literatura?, pergunto. De uma arrogância que não agride, mas serve a um propósito: aventar, a seu modo, que as coisas estão erradas e que é preciso, de alguma maneira, modificá-las? Silêncio.

12 E quanto a esse livro, meu bom rapaz?, ele pergunta, apontando para Aninhanha, uma combinação de capa em vermelho e cinza que reluz. Antes que minhas humildes impressões se tornem verbo, o sábio já folheia o texto com milimetrada curiosidade. Apenas um parágrafo?, ele pergunta, mais uma vez surpreso, mas se recompõe: "é arriscado!". Também penso assim, e me parece, argumento, que Aninhanha é um livro feito de riscos, e isso inclui a história e o leitor.

13 O ingênuo se interessa. O leitor?, questiona. Faço que sim com movimentos de cabeça e pescoço. Eis o que quero dizer: não quero tecer comparações, embora não as evite. Alguns autores, abusando do fato de que a literatura ainda faz algum sentido, foram capazes de estabelecer entre o texto e o leitor uma séria e fascinante relação de dependência, e isso se torna possível através da técnica ou do assunto. Ou dos dois, como fizeram Arreola, Celine, Arlt, Gombrowicz. O sábio enruga o rosto, mas permite que eu continue. Repito que não quero comparações, mas Pedro Nunes, o jota de José, e mais uma vez mantendo-se as proporções, conseguiu aquilo de que esses citados autores foram capazes: tornar o leitor um quase personagem - mesmo que de cunho apenas auricular -, participante de uma trama que é dor e náusea, que é inventividade, crime e pecado. O ingênuo, após um ano, ganhou peso e pelos no rosto, e se tornou mais participativo. Telepaticamente orientado pelo sábio, pergunta-me sobre personagens. Pergunta providencial, que me permite responder, em minha singela observação, que o principal personagem de Aninhanha é a linguagem.

14 Num rumo à Teoria Literária, o termo personagem, como a própria denominação acentua, é ligado ao ser humano, do latim persona, embora imaginário. Isso bem se aplica aos moldes de textos de outros séculos que não o nosso. A literatura modificou-se, mostrou a língua para a teoria, e de certa forma estabeleceu que qualquer ser, dentro do texto, capaz de ter vida própria, pode ser considerado personagem. Também não é uma novidade. É o que acontece em Aninhanha, onde a linguagem - e não a língua, regra imposta -, cheia de inversões, vírgulas suprimidas e neologismos, é um ser em mutação contínua, um ser que passeia pelo texto com desenvoltura, esbofeteando o leitor - que se arrisca.

15 Um combate?, quer saber o ingênuo. Aí está o risco do leitor que, se desavisado, vai à lona. Aninhanha é texto de elaboração exaustiva (presumo), quase parnasiano em sua forma. Não aquele parnasianismo raimundiano de alheamento universal, mas texto parnasiano enquanto preocupação com a escolha das palavras, a exata sonoridade, o ritmo de cada sílaba, texto enxuto ao bom sol. O sábio me ouve, embora não retire do texto os olhos. Não é o mesmo autor de Vilarejo? Respondo que sim, e que também gostei de tal texto, embora prefira Aninhanha. Em Vilarejo, a estrutura é formal - algo que em hipótese alguma empalidece o texto -, mas muito me atraem modulações de linguagem. E Aninhanha é um dos bons exemplos que conheço.

16 É um imenso monólogo, como em Grande sertão. Claro que com menos densidade e menos assunto, pontua o sábio, que acerta sem ter lido, ainda, o livro em questão. Disco quanto à expressão monólogo, arrisco. Penso que diálogo, e com o leitor. O ingênuo fecha os olhinhos e move a cabeça. Aponto que a linguagem, combinação de referencial e apelativa, poderia muito bem ser considerada uma grande apóstrofe, um chamamento do qual o leitor é direção. O sábio ouve, ainda com os olhos em Aninhanha.

17 O que mais dizer? pergunto-me. Assinalar passagens do livro, citar? Encher nossa conversa com aspas e retórica que nunca corresponderá em justiça ao que está escrito? Deixo que o sábio componha suas conclusões, e também o ingênuo - mais arguto, mais leitor. É quase meio-dia: o corpo implorando proteína. O sábio reassume o verbo e, sempre surpresa, sugere que eu lhe empreste os livros. Uma leitura rápida, ele diz. Argumento que não - mas é um não ambíguo: relativo ao empréstimo e à dinâmica de sua leitura. Fique com eles, digo, mas leia-os com vagar, com a disposição que se deve ter frente aos bons livros, aqueles que nos servem à memória e ao sabor.

19 Há os agradecimentos, sorrisos. O sábio e o ingênuo, mais uma vez os encontro e em mim ficam as duas impressões. Uma delas, corretíssima: a missão se cumpriu. Hardcore blues e Aninhanha estão em boas mãos. Descobrirão nos textos muito mais do que fui capaz de contar. Quanto à outra, suspeita infinita, é aquela em que vislumbro o sábio e o ingênuo se distanciarem, as mesmas passadas pausadas, a quase certeza de que, a partir de agora, são mais felizes.

 

- Francisco Grijó é professor de literatura e escritor. Texto publicado na revista Você: SPDC-Ufes, ano II, nº 14, agosto de 1993, p. 24 a 27.

 

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