A Morte e a Beleza são coisas profundas, que contêm
tanto azul e tanto negro que parecem irmãs terríveis
e fecundas com o mesmo enigma e igual mistério.
(Victor Hugo)
Ando sumida, eu sei. Hesitei muito em me deixar guiar por esse enigma mencionado na epígrafe. A morte, porém, não podendo ser simbolizada, me ronda, e, como fantasia, se enlaça em forma de nó borromeano à fugidia e inexplicável experiência do real. Como explicar? Só mesmo vivendo. Assim também o sentido da Beleza, desde a Grécia antiga, é diverso do sentido do desejo. Ambos, a beleza e o desejo, como a morte, se revestem de mistério. Entregue a esse pensamento vago, reunindo à potência dos afetos os fragmentos da tão cara lembrança deixada por Luiz Guilherme, é por ele e para ele que hoje escrevo. Face à irrupção do real, que escancara o caos logo ali à espreita na esquina, tentando não sucumbir à convulsão em que vive o mundo, ando à cata de beleza.
Acordo cedo. Às 5h40, sem saber se ainda é noite ou se já é dia, deparo-me com o amanhecer exuberantemente róseo que se esparrama ao longo de toda a extensão da paisagem descortinada na varanda. Observo, contemplo as nuances que jamais se repetem nessa tela impressionista. O restante da casa permanece no escuro. Passando pela cozinha, dirijo-me à área de serviço para uma providência qualquer e noto no chão imensa claridade. Não acendo a luz; não é preciso. Vou até a janela e eis que a lua cheia, rainha no quintal, resplandecente e bela, clareia tudo, iluminando, definindo o contorno denso das sombras das árvores em torno do penhasco. Volto à varanda e me detenho por algum tempo ante o alvorecer; corro de volta à janela para o vasto quintal e penso que ainda é possível sonhar. Dia e noite, noite e dia, simultaneamente. Não sei se gosto mais do dia, não sei se gosto mais da noite. Parece coisa de criança, bem sei, mas ele e ela estão lá: o sol e a lua.
Referi-me no início à inexplicável, inominável, experiência do espanto e do vazio diante do real. Pela lógica instituída por Pitágoras e posteriormente ampliada e aperfeiçoada por Heráclito, a representação do mundo, a origem do universo e a vida de todos os seres, assim como a beleza e a perfeição, só são possíveis pela coexistência das antíteses. Logo, vida e morte fazem parte indissoluvelmente de nossa cosmogonia. Vou à biblioteca e recolho os livros de autoria de Luiz Guilherme que eu havia organizado em um dos nichos da estante, vários deles com dedicatória e a sua assinatura. Face à ausência definitiva do querido amigo, encontro, junto à sua vasta obra, seu sorriso largo na lembrancinha recebida da família alguns dias antes. Quisera contar aqui quão belas e comoventes histórias, prosseguindo a linhagem homérica, Luiz Guilherme Santos Neves compôs ao longo de toda a sua vida. Entrelaçadas ficção e História, prosa e poesia, essas histórias se eternizam no rigoroso traçado do pesquisador, que, com sutileza, muito estudo e dedicação, imprimiu melodia e ritmo à laboriosa e exímia criação do escritor.
Sobre a escrivaninha, espalhados à minha volta, esses livros, alguns deles lidos e relidos, me olham. Preciso nomeá-los para preservar a beleza do instante dessa experiência. O tempo, sabemos, faz trapaças. Para dar um pouco de ordem ao pensamento que vagueia, começo por mencionar os romances e os livros de contos, instigando, quem sabe, o desejo do leitor para a sua leitura, sem pretender desfiar intrincadas considerações sobre sua decisiva importância para a literatura e a história do Espírito Santo. De 1982, pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, A Nau Decapitada; de 1998, pelo Instituto Histórico e Geográfico do E.S. e Cultural-ES, As Chamas na Missa; de 1999, também pelo Instituto Histórico e Geográfico do E.S. e Cultural-ES, O Templo e a Forca, cuja escritura, uma vez concluída e perdida para todo o sempre nos instáveis recursos tecnológicos de então, exigiu do historiador e romancista engenho e arte e coragem para a recriação do romance. Impossível esquecer a abnegação e a alegria do escritor ao dizer que ter perdido tudo possibilitou-lhe fazer a segunda versão melhor que a primeira. Também não há como esquecer ter tido a oportunidade e a honra de ler esse memorável romance, em primeira mão, antes de publicado. Li três vezes esse romance e nunca me perdoarei não ter escrito nada sobre ele. Mas rabisquei uns palpites sobre O Capitão do Fim, romance de 2001 pelo Instituto Histórico e Geográfico do E.S. e Cultural-ES, em que o autor, ao tratar do fado e das vicissitudes da colonização da capitania do Espírito Santo com a determinação do historiador investido da argúcia do ficcionista, o faz sob o viés da crítica cristã aos sete pecados capitais. E o faz, acrescento, com a mestria dos que sabem que o encantamento por uma boa história se encerra na forma muito peculiar com que essa história é contada, melodiosamente, com leveza e graça, à maneira das cirandas. Ainda na esteira dos romances, lembro o Encontro Póstumo com Fernão Ferreiro, em Memória das Cinzas, de 2009 pela Secult/ES. Destaco, dentre as epígrafes, aquela que bem o define: “Se toda história é a história de uma busca, a busca da poética, mais do que uma história pode ser uma conquista”. E se se trata de dizer nesse canto algo que, como sua poética, nos lembre um encontro com a beleza, como não incluir nessa trajetória literária dois símbolos do que representa a criação estética e historiográfica de Luiz Guilherme Santos Neves? Refiro-me a Cidadilha – crônica inverossímil de uma cidade inexistente, publicada em 2008, por Cultural/ES & Edições Tertúlia, e Navegação: em torno da ilha vislumbrada, fotografias de Pedro J. Nunes: Cultural & Edições Tertúlia, 2014. Dois ícones, dois clássicos, que, como diria Italo Calvino, foram criados para se ler e reler.
Estendendo um pouco mais meu olhar sobre esses livros que tanto enaltecem a história, a cultura e as belezas do Espírito Santo, compartilho com o leitor curioso a vastidão de temas e abordagens poéticas da vida capixaba, enumerando apenas mais alguns deles: Escrivão da Frota, livro de crônicas reunidas da saudosa revista Você (quem não se lembra?!); Crônicas da Insólita Fortuna; Torre do Delírio: contos eróticos e fantásticos;
História de Barbagato; Tião Sabará (escrito em parceria com Renato Pacheco); Crinquinim e o Mestre Álvaro; Crinquinim e a Puxada do Mastro; Breviário do Folclore Capixaba; Visão de Anchieta; e Passeio pelo Centro de Vitória na Companhia de Rubem Braga, com fotos de Humberto Capai.
Caro leitor, conceda-me um pouquinho mais o privilégio de sua atenção. É preciso que se diga: amigos da Biblioteca Pública do Espírito Santo - BPES -, Luiz Guilherme e Therezinha prezavam e prestigiavam a histórica, centenária instituição, guardiã da informação e do conhecimento por quase dois séculos, com suas valiosíssimas coleções e seus acervos, participando e honrando com sua presença de cada iniciativa de estímulo e valorização da literatura, da história e da cultura em nosso estado. É possível sentir ainda, a despeito do tempo que passa tão célere, o calor dessa amizade.
Na madrugada, às vésperas da missa, tive um sonho leve e bom. Como todo bom sonho, ele é indescritível. Luiz Guilherme conversava comigo numa manhã qualquer no escritório em sua casa e me entregava, uma a uma, folhas de papel, fotografias, escritos diversos, que traziam anotações esparsas, lembranças de outrora da cidade ilha, do sabalogos, dos amigos, da Biblioteca, os originais da maravilhosa ciranda Os Olhos de Marianita, que ele sabia que eu amava tanto. Havia no sonho como que um sopro, um leve sussurro... Eu me pergunto, em meio à vaga alegria que criava e emanava daquela atmosfera de sonho, que mistério há nessas imagens oníricas a embalar a lembrança do amigo que partiu? Diria Pedro, talvez, que o conheceu tão bem: “Luiz foi encontrar, feliz da vida, os amigos Ivan e Renato, e quiçá seu pai...”. O sonho, a obra e a imortalidade: uma construção de sentidos intensa e infinita. Nas entrelinhas, a comunicação entre os seres. A literatura e os sonhos têm dessas coisas...
Vitória, 14 de agosto de 2024.