Os mortos estão no living, de Miguel Marvilla

Pedro J. Nunes

Há muito a dizer sobre o volume de contos Os mortos estão no living, do escritor Miguel Marvilla. Já na edição de 1987, ano de lançamento do livro, em carta-prefácio, Paulo Sodré adverte do muito “a ser estudado no que concerne à estrutura de seus textos (diálogos, parágrafos incomuns etc.) linguagem, procedimentos poéticos, metáforas, intertextos, estilos e outros aspectos.” Por isso, é bom o leitor cujo atalho sejam respostas (e o livro de Miguel Marvilla com certeza destila no leitor inúmeras questões, literárias ou não) estar atento.

Enfrentaria, como leitor, o dilema em que Paulo Sodré, missivista-prefaciador, com toda a autoridade conferida a ele, não meteu a colher? Disse este: “não me interesso pelo sexo dos anjos, assim como não me meto entre malhas de diferenciação entre prosa, poesia, poesia prosética, prosa poesaica. Absolutamente; e talvez peque.” Respondo: não, seguramente não. E aí, sim, sem medo de pecar. Inclusive porque há muito mais em Os mortos estão no living.

Miguel Marvilla, diga-se de passagem, é considerado um dos mais expressivos poetas capixabas. Depois de haver publicado vários livros de poemas, esta é, segundo consta, sua primeira incursão pela – quase dizia prosa, traindo-me – história curta, ou conto. Natural, iniciada a leitura, a expectativa em torno de prosa-poética ou poesia-prosa (com licença da falta de paralelismo). Após o dilema inicial do leitor conhecedor de sua obra, o certo é que ali vai o lápis do contista com dividendos creditados ao excelente poeta que é. Uma tabela a nosso favor: ganhamos duplamente.

O que salta aos olhos em Os mortos estão no living é sua unidade. Normalmente as antologias de contos não embarcam nessa. A estrutura do livro, dividido em dois volumes, já é reveladora. Os mortos: primeiro volume, enfeixando vinte e quatro contos se considerarmos o primeiro deles como três (são três ou são dois debaixo da lua?). Os outros: segundo volume, com pouco mais de meia dúzia de contos. O autor delimita, quer deixar bem claro seu tema. Ainda mais se considerarmos a sugestiva antonímia: os outros só podem ser os vivos, aqueles, por imposição natural, sujeitos à morte, o leitor tire suas conclusões. É vida e é quase-morte e limiares da vida, e é morte, com todo seu poder de aniquilamento, entrechocando todo o tempo nos contos de Miguel Marvilla, viver e morrer e seus molhos:

a) uma pitada de perplexidade (“A gravidez é um estado masculino de desprezo. Nascer, fazer nascer, são maneiras cômodas de não apresentar razões.” – Júlia D.: o banho),

b) resignação (“...ouve-se um martelar de sinos e Mendelssohn. Selam seu destino. Triste sina: não é um véu, mas mortalha, que a cabisbaixa carrega, presa.” - Casamento),

c) desejo (Deborah para o vampiro: “- Terá sido sua então a boca que senti sobre os seios e suas as mãos que me desnudaram e seus os caninos que me romperam a jugular, nas noites em que eu me julgava só? (...) Ah, e quanta doçura havia em suas mãos e lábios em meus sonhos! Que foi feito dela? Trouxe-a consigo?” – O vampiro, Deborah),

d) imolação (“A noiva, (...) empunhada pelo pai circunspecto, adentra a igreja e é entregue ao seu algoz. Nada lhe resta a fazer, senão calar-se e acomodar-se aos destino que lhe reservaram.” -  Três histórias),

e) bem-aventurança: (“ajeitou, com gesto imperceptível e triste, os cabelos deles, beijou a ambos carinhosamente e, ainda sem que notassem, sentou-se à beira da cama onde estava o seu corpo e enjaulou-se em si mesma, acomodada em sua condição de morta até o dia em que tivesse de levantar-se e passar o filme dos cadáveres da família na memória de suas crianças.” – Os mortos estão no living),

f) imagens psicodélicas (“Uma borboleta atravessou o set e fez um pouso azul na borda de um copo de cristal.” – O vampiro, Deborah),

g) miríades de seios nus, imagens venéreas recorrentes (“Onde encontrar uma vagina disponível?” – Fragmentos), aliterações (“São mais que várias em idade, sexo e solidão as crianças em redor da fogueira e o cão, sedentos de carinho.” – Três histórias), sinestesias (“Um toca-discos manchava o ar com uma valsa de Strauss.” – Júlia D.: o banho), desesperança (“Há nuvens, ninguém telefona, ninguém observa o luar incipiente, ninguém acredita que” – O domínio),

h) etc.

Os primeiros contos, reunidos num só, Três histórias, já instauram o cenário lúgubre do resto do livro e apresentam o que vai se repetindo feito uma goteira ácida até o último conto. É de morte que se trata, desde o princípio, morte que se avizinha, que está no limiar de nossa consciência, morte de tudo e de todos (parece uma visão dantesca de um tempo de atraso, descrença e aniquilamento total), morte da fé, morte do ser, e, como bem ilustra outra vez Paulo Sodré, os “textos desenham os cadáveres abstratos de nossa contemporaneidade.”

Concluída a tarefa da nem sempre fácil, mas sempre prazerosa, leitura de Os mortos estão no living, creio que um lugar comum me destrave o ponto final. Mais de uma vez já se disse que o que faz a grande literatura é o não dito, o que se pode entrever, etc. Os mortos estão no living é isso e muito mais. Não espere o leitor encontrar nos contos de Miguel Marvilla um caminho fácil. Elucide. Garanto que o caminho será prazeroso:

 

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