O fim da nau

Erlon José Paschoal

Todos conhecem a destreza narrativa de Luiz Guilherme Santos Neves - escritor e historiador com vários livros publicados -, sobretudo através de sua obra O capitão do fim, narrada na primeira pessoa pelo primeiro donatário da Capitania do Espírito Santo, o próprio Vasco Fernandes Coutinho, após a sua morte - relatos póstumos como se fosse um Brás Cubas capixaba -, que flui levemente com sua  estrutura épica ágil e, ao mesmo tempo, distanciada e elucidativa. Sem dúvida, trata-se de uma obra sensível, bem-humorada, dotada de rigor histórico e artístico, e escrita num ritmo e numa linguagem acessível e atraente, possibilitando a um público mais amplo o contato lúdico com o nosso passado e com alguns dos protagonistas de nossa história.

A moral hipócrita, a alegria, o descalabro na vida pública, os escândalos nossos de cada dia, a ganância, a visão distorcida e equivocada que os tais civilizados tinham dos indígenas - os habitantes originários dessa nossa terra - a sensualidade, a relação profunda com a natureza e as contradições entre produzir incessantemente ou desfrutar a vida em meio às belezas naturais: tudo isso aflora na obra proporcionando ao leitor momentos de prazer e de exercício do senso crítico.

A estrutura de outra de suas obras A nau decapitada, contendo muitos destes elementos, parte de um relato de viagem, constante nos arquivos históricos relativos à formação do Estado do Espírito Santo, escrito por José Joaquim Machado de Oliveira, em 1840. Nela, o então Presidente de Província, assim era chamado na época, relata as agruras sofridas durante a viagem em um brigue - um navio de dois mastros com velas redondas e cestos de gávea e uma vela latina no mastro de ré - do Rio de Janeiro a Vitória, onde foi impossibilitado de atracar por conta dos ventos e da incompetência dos marujos, indo parar na enseada de Piúma, mais ao Sul do Estado. Na ocasião a embarcação perdeu a cabeça de proa, sendo por assim dizer decapitada nesta desventura.

O narrador, o Major Marcelino, chamado para conduzir o ilustre personagem à capital da província fazendo uso de uma tropa de cavalos, vai alinhavando em capítulos curtos a viagem por terra e os infortúnios causados ao Presidente, culminando com o roubo de um baú com toda a sua bagagem, incluindo livros raros, cometido pela tripulação do brigue comandado pelo facínora Simão Boncarneiro, e com a posterior perseguição aos responsáveis.

Nesta tentativa de encontrar e punir os culpados, o Major visita Nova Almeida e São Mateus, e tem contato com figuras humanas diversas, em sua maioria gananciosas, interesseiras e calculistas, em meio a uma natureza deslumbrante povoada também por índios e negros, ambos considerados inferiores e indolentes, e tratados com desprezo pelos portugueses.

Depois de um ano, terminado o mandato do Presidente, o narrador retorna a Itapemirim, onde residia, e coincidentemente reencontra o grumete Nico Querubinho, da tripulação do brigue que havia trazido a tal autoridade política que desencadeou toda a história e que foi a razão de todo o seu trabalho, e se apaixona por ele. Mas pouco tempo depois é surpreendentemente abandonado por Nico, que parte de volta ao Rio de Janeiro após reencontrar o seu primeiro senhor e amante, Simão Boncarneiro, que o havia introduzido neste tipo de relação. Uma ousadia do autor ou um comportamento comum naquele mundo masculinizado e machista, apesar de ser um tema tabu na época?

Uma narrativa prazerosa que leva o leitor por regiões do Espírito Santo ainda em formação e o coloca em contato com tipos humanos comuns que habitaram e lançaram as bases morais em nossa sociedade.

Erlon José Paschoal é gestor cultural, diretor de teatro, escritor e tradutor de alemão.

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