Memória das cinzas

Encontro póstumo com Fernão Ferreiro
com ilustrações imaginadas à Gustave Doré

 

Luiz Guilherme Santos Neves

 

Epígrafes:

A arte é uma luta árdua (Borges).

Pois quando todos dormem, a mim basta  registrar o prazer do imaginário (Goethe).

Se toda história é a história de uma busca, a busca da poética, mais do que uma história, pode ser uma conquista.

 

Apresentação

Fernando Antônio de Moraes Achiamé
Pesquisador-associado do Neples/Ufes

Renascimento

O mito é o nada que é tudo.
Fernando Pessoa

Este pequeno mas substancioso romance nos revela nova faceta do seu Autor – a de que ele, escritor consagrado, também envereda pelos árduos caminhos da poesia. Não que isso fosse surpresa para seus leitores: muitos deles, entre os quais me incluo, consideram Luiz Guilherme Santos Neves o mais lírico dos romancistas capixabas em atividade pela inflexão melodiosa que costuma imprimir às frases dos seus textos de ficção. Contudo, lembro logo, as páginas que se seguem não são pílulas açucaradas, em geral enjoativas, do que há muito se convencionou chamar de “poemas em prosa”. Renato Pacheco gostava de ensinar o recurso – que creio não ser dele – para identificar de pronto a poesia de má qualidade, os versinhos: basta encadeá-los como se fossem texto comum para neles constatar a falta de valor poético, e mesmo prosaico. Mas a operação inversa é igualmente possível. Um texto em prosa pode guardar musicalidade, ritmo, ou expressão que o torna equivalente à criação poética, o que é constatado de modo simples se alguns de seus trechos forem mentalmente dispostos em versos. Convido o leitor a utilizar esse processo em certas passagens das Memórias das cinzas para certificar-se de que elas destilam poesia. E da boa: poesia existe nas formas as mais insuspeitadas. Sem contar, mas já contando, que nesta caminhada, guiados pelo narrador, encontramos preciosidades em verso e prosa; e com uma vantagem: não é necessário um garimpo exaustivo, pois sempre nos deparamos com belas imagens, belas figuras de linguagem, belos “achados” praticamente à flor da trama.

Para integrar o panteão literário espírito-santense nada falta ao Autor, ele que deu origem a uma vasta, variada, qualificada e bem recebida obra ficcional. Mas o bicho-carpinteiro da arte continuou a inquietá-lo e o levou a compor mais um livro. Leitor desavisado poderia observar, de forma ligeira, que aqui está presente uma inovação: a soma de prosa e poesia. Na verdade, este escrito vai mais além, ousa mais ao empregar um estratagema de natureza multiplicadora – a beleza dos versos de Fernão Ferreiro/Renato Pacheco é combinada magistralmente pelo romancista com a beleza do seu estilo poético, conferindo maior valor ao todo do que a simples adição das partes. Poder-se-ia objetar que uma coisa é a poesia tout court de Ferreiro/Pacheco e outra seria o lirismo implícito na prosa luiz-guilhermina. Mas afinal, insisto, ambas não seriam visadas poéticas somente fixadas em registros distintos? Canto e conto são duas palavras assemelhadas, com acepções diversas, mas que podem se mesclar.

Foi de fato ousadia de Luiz Guilherme escrever contos que dialogam com os cantos produzidos por Renato, seu companheiro de tantos e tão valiosos cometimentos intelectuais. E ousadia exercida com pleno êxito ao comungar os versos do Ferreiro e, numa espécie de autofagia (os espíritos fraternos compartilham muitas identidades), incorporar ao seu texto as qualidades do texto do antigo parceiro. É possível que esse seja o sentido primordial da comunhão, ato presente em variadas etnias e religiões ao longo da história – o compartilhamento do bem, do que é bom, do belo. Neste trabalho ocorre outra espécie de comunhão/fusão: a de amalgamar o seu texto ao do amigo morto para que eles (amigos e textos) nunca mais possam ser separados. Em outras palavras, para que a comovente distância imposta pelo desaparecimento físico de Renato seja anulada por quem remanesce – eles novamente unidos, reunidos.

E quem pode negar que os dois escritores, em certo sentido, venceram a morte, já que nesta obra continuam sua mútua colaboração em mais um empreendimento literário? Não, Marco Aurélio, talvez a sua estóica, realista e conhecida sentença (“Logo esquecerás tudo, logo todos te esquecerão”) não seja inteiramente verdadeira – existem outras realidades além daquela que nos é dado perceber diretamente. O que se lerá com prazer adiante é também uma homenagem de gratidão e de saudade formulada por Luiz Guilherme: não te esqueci, amigo Renato, não te esqueci, e a prova é que agora você está renascido (“renato”) nestas páginas.

Delas escapa aqui e ali o travo da nostalgia – como se seu Autor quisesse dizer “ainda mais uma vez adeus”, ou “pela última vez adeus”. A ausência do amigo tocou fundo na alma de Luiz Guilherme (“Nunca chorei tanto na vida”) e disso sou testemunha. É para compensar o sentimento de perda que este texto onírico foi escrito; um pouco como resposta à pequena “traição” daquele que tão cedo e tão inesperadamente deixou sozinho seu colega. Livro feito para exorcizar a falta do companheiro ex corde? Sim, sem dúvida, mas ao mesmo tempo para celebrar a amizade que continua em outra vida – na vida das palavras quando menos. Para nós humanos, os amigos, os verdadeiros amigos, são importantíssimos e nos ajudam a criar e recriar nossas vidas. Cícero, Da velhice e da amizade, já o sabia há dois mil anos. Assim, nós e as amizades que nos cercam somos criadores e recriadores de nossas existências e, portanto, temos uma centelha do divino. E se formos artistas, como é o caso, aumenta o caráter deífico dessa centelha. E deuses não morrem. Ou, quando o fazem, costumam renascer, da mesma forma que sempre e sempre renasce o puro amor fraternal. Por isso é que se pode afirmar: destas Memórias das cinzas, qual fênix, originou-se um renascimento.

Discordo de Luiz Guilherme quando afirma que o tempo e o lugar do romance são indefinidos, decerto com o intuito de soprar um pouco mais de névoa em redor do leitor, para desarmá-lo frente às narrativas que o aguardam. O lugar deste romance é o da cidade de Vitória – bem entendido, uma Vitória mítica – e seu entorno, fantasticamente percorridos pelo mestre e seu discípulo, ambos vitorienses da gema. E o tempo dele é o da história do lugar, não fossem historiadores esses parceiros; história, bem entendido, tratada ficcionalmente e tendo como único compromisso a criação estética. São os ares, os casos, os ditos, o espírito local e de certo tempo que aqui comparecem. Que outra cidade teria, ou tem, por exemplo, a “cruz acorcundada”? Que outro tempo, a não ser o vitoriense, comportaria o poema do padre Marcelino Duarte? Ao fim e ao cabo, o que é a história se não a construção de mitos? E em que consistem as artes, afinal, se não na criação de mitos? Poetas costumam ter razão; Fernando Pessoa que o diga. A mitificação de certa amizade, eis uma das chaves deste livro. Se ele trata ceticamente de questões existenciais – testamento intelectual da parceria? –, muitas instituições humanas são examinadas de uma ótica particularíssima: a de escritores nascidos e criados em Vitória do Espírito Santo há muitas décadas. Nos contos, este passeio por cantos e recantos da aldeia – e, portanto, do universo onde estão o céu e o inferno humanos – nos mostra que toda glória é vanglória, vão todo poder, vã toda riqueza. Por isso o poeta e seu discípulo evitam adentrar certos recintos, detendo-se à sua porta. Por que entrar se já sabem o que lá existe? Melhor empenharem-se na grande arte da escrita e na verve difícil e particular de “rindo corrigir os costumes”.

É conveniente o registro: muitas passagens adiante são inteiramente verdadeiras; quer dizer, baseiam-se em diálogos e frases realmente pronunciadas pelo amigo desaparecido (desaparecido mesmo?), que fala novamente por palavras que disse e redisse ao romancista. Se algumas fontes desta obra são acessíveis a muitos – por exemplo, os Cantos de Fernão Ferreiro, as gravuras de Gustave Doré –, outras são especiais e únicas, como foram especiais e únicas as relações de amizade entre eles. Desta maneira, nenhum outro autor poderia escrever este trabalho no diapasão em que foi composto: Renato Pacheco em verso e prosa, Renato e seus heterônimos, Renato amigo, confidente, antropológico, brincalhão, filosófico, professoral... Renato completo, para dar conta do pesar imenso deixado no coração do seu companheiro que com ele tanto aprendeu – afinal de contas, este pode muito bem ser mais um projeto para afastar a Indesejada das gentes, para satisfazer um pouco que seja a “Insaciável”...

O escritor não evita os jogos de palavras: em certas passagens tem-se a impressão de que elas até se oferecem para entrar no jogo; e isso, além de fazer parte do seu estilo, não deixa de constituir um preito deferido ao pai, Guilherme Santos Neves, que cultivava o trocadilho. Aliás, o texto traz referências esparsas a manifestações folclóricas, em dupla homenagem feita por Luiz Guilherme ao pai e mestre, e ao amigo e mestre – os dois folcloristas de mão-cheia.

Alguém poderia observar que a folha de rosto deste livro deveria conter os nomes de ambos os companheiros, mesmo sabendo que a seleção dos versos e a composição do texto final foram realizadas por quem está vivo. Mas tenho certeza de que Renato não permitiria isso; parece que o estou vendo objetar: “De jeito nenhum! O livro é do Luiz. Sou somente um pelicano, que os antigos acreditavam abrir o peito para dar suas entranhas em alimento aos filhotes. Quem teve a ideia e a realizou foi Luiz e é dele a parte feita”. E estaria certo: “o por fazer é só com Deus”. E “a parte feita” não é um quebra-cabeça destituído de emoção, mero jogo de armar em que os processos técnicos, e somente eles, constroem e predominam. É, na verdade, uma escavação no interior de si mesmo, como faz todo artista digno deste nome. O romancista, também ele pelicano, se desnuda e se desventra ao pôr e dispor por escrito sentimentos e emoções, sempre à procura do enfoque diferente, da palavra e da expressão corretas e surpreendentes.

A substância deste romance é o sonho – e de qual romance não seria? Aliás, como é a da vida: “vida é sonho”. Sonho imemorial, sonhado por homens e artistas – a busca da transcendência. Buscamos constantemente nos elevar acima da nossa vida cotidiana por sabê-la limitada, provisória, suspensa por parco fio que um dia a Parca Átropos, a Inflexível, cortará. Nesse sentido podemos entender a máxima “vida breve, arte longa”: a existência individual passa rápido, mas a arte, se possuir valor estético e for compartilhada socialmente, costuma ter duração bem maior.

Para a arte tudo é possível: nada impede que, no futuro, surjam outras manifestações artísticas (poema, peça de teatro, filme, pintura, partitura etc.) tendo por base este trabalho literário – a arte é longa, bem longa. As “Ilustrações Imaginárias”, enunciadas entre colchetes ao final de cada conto, sintetizam de forma primorosa o que se passou, reforçam a narrativa e então temos outro “co-autor”. Os que conhecem as gravuras de Doré em preto e seus meios-tons rapidamente imaginam naqueles traços e desenhos, naquele “clima”, o que nosso romancista descreve nos contos e sugere no fecho de cada um deles. Esta é uma história em preto-e-branco; o preto-e-branco de muitos filmes clássicos – e penso naqueles do neo-realismo italiano – e das clássicas fotos de Cartier-Bresson, Pierre Verger, Sebastião Salgado. À minha proposta, talvez ingênua mas procurando valorizar a obra, de mandar fazer gravuras para os contos, ou pelo menos para alguns deles, Luiz Guilherme contemporizou e desconversou. E ele tem razão: as melhores gravuras serão aquelas que, baseada nas indicações escritas, a imaginação do leitor criar, mesmo que nunca tenha visto qualquer estampa de Doré. Mas que dá uma vontade danada de encomendar desenhos que tenham por referência os contos, isso dá. Para a arte tudo é possível: nada impede que este livro continue a viajar e a partir dele um bom desenhista faça outro trabalho ao transformar as “Ilustrações Imaginárias” em “Ilustrações Novas”.

Sim, Renato e Luiz Guilherme, “agora tudo é novo”, pois tudo é sempre novo, e este novo romance “ao longe vos conduz”. Na eternidade, nem que seja naquela da arte, vocês, amigos verdadeiros, juntos estarão. Ou melhor, já estão.

 

Preâmbulo que se faz necessário

Luiz Guilherme Santos Neves

Este romance é uma revisitação contextualizada dos Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos (os dois outros heterônimos são Fausto Barbosa e Antão Reis), da autoria de Renato Pacheco, um dos mais completos intelectuais do Espírito Santo, falecido em 18 de março de 2004. E a revisitação se faz mediante a interação entre o texto do romance e versos que foram selecionados àquela obra, num exercício de intertextualidade assumida e declarada (1).

A fim de municiar o leitor de algumas pistas básicas para esclarecer a leitura desta memória cumpre dar a palavra ao próprio Renato Pacheco (1928-2004), que “incorporou” Fernão Ferreiro em sua poética, tomando-se por base a transcrição da nota prévia que ele apresentou aos Cantos:

“Fernão Ferreiro é heterônimo meu, só pode ser heterônimo, tão diferente de mim que outro é. Nasceu Ferreira, mas tantas fez o moço, que exigiu chamar-se Ferreiro, ‘meu vulcânico nome’, ele me disse. A ideia era recuperar 81 cantos em grupos de 9, com um medial, sinótico, a cada nona parada. A inspiração, ai de mim, é poundiana, obviamente: ‘Neste meu lago cabem todas as poéticas’, diz-se no Canto 0 (grifei).

Mas a temática será, tanto quanto possível, nossa, desde que o leitor penetre no mistério. Se houver necessidade de chaves, um dia, serão divulgadas.

Melhor, entanto, seguir o conselho de Ezra Pound: ‘pule tudo aquilo que você não entende’ (Correspondência, 1934, apud Pound, Ezra, Poesia, Hucitec/U.Brasília, 1983).

Fernão Ferreiro me diz que ‘nasceu em Colatina, Espírito Santo, às margens do rio Doce, em 2 de janeiro de 1948 [tinha, pois, 36 anos quando gerou os Cantos]. De sua cidade natal saiu, formado em História, em 1972 [tal como Renato Pacheco, que também lecionou História e a pesquisou como atestam muitas de suas obras].

Subsiste [continua Renato Pacheco em sua nota prévia referindo-se a Fernão Ferreiro] dando esporádicas aulas de recuperação a heloísas ricas, e passa o resto de seu tempo andando pelas praias e morros da Grande Vitória (a qualquer hora do dia e da noite) e lendo poesia. Entre os clássicos, Homero, Dante e Camões. Dos modernos, Fernando Pessoa, Eliot, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, e, é claro, Pound. A leitura do Poema Graciano, de Reinaldo Santos Neves (2) e dos Cantares de Ezra Pound desencadeou seu processo criativo dos Cantos, cuja conclusão, inicialmente, estava prevista para de dois a nove anos, mas que, por pura compulsão interna, foram todos escritos de fevereiro a março de 1984, com aproveitamento de um que outro texto mais antigo.

Para mim o tour-de-force revisitação de anima, verdadeiro curso de poética, sem diploma nem lauréis. Vitória, 13 de março de 1984. R.P.”   

Desta nota prévia com que Renato Pacheco antecedeu os Cantos do Ferreiro permito-me destacar dois pontos: 1º) a confissão de surpresa com que o autor se disse tomado pelo seu poema: “Fernão Ferreiro é heterônimo meu, só pode ser heterônimo, tão diferente de mim que outro é.” [grifei]; 2º) a sofreguidão [tour-de-force] com que o autor os escreveu, atropelando um projeto poético que era para ser realizado de dois a nove anos, mas que explodiu em vórtice incontrolável, “por pura compulsão interna”, em apenas dois meses, de fevereiro a março de 1984 – coincidentemente o ano orwelliano. 

A esta compulsão volta a se referir Fernão Ferreiro no Canto 11: Me tornei uma usina geradora de poemas, / um corpo sintonizado nos ativos canais do infinito... E o faz também no Canto 49: Estes cantos estão sendo intuídos / Por arquiteto humilde e heterônimo, / Buscando, com os sentidos, entender algo.

E aqui faço eu, autor desta Memória, um encaixe ilustrativo para esta edição: fui parceiro de Renato Pacheco na autoria de várias obras. Com ele convivi de perto, numa amizade que durou cinquenta e cinco anos. Posso confirmar, de cadeira, a obsessão que era uma de suas características intelectuais. Nas muitas vezes em que exercemos a nossa parceria que incluiu trabalhos que versaram a literatura e a história, mal nascia a ideia de um projeto e Renato se apressava em me passar às mãos, sem mais demora, a parte que a ele cabia em nosso minifúndio de livros. A mim, Renato deu-me ainda a incumbência de ser testemunha, em documento passado em cartório, de que ele queria ser queimado depois de morto.

Não é de estranhar, portanto, que os Cantos de Fernão Ferreiro tenham brotado de enxurrada, no curtíssimo prazo em que brotaram, fluindo no roldão de um empolgante processo criativo que absorveu e dominou o seu autor. Eis aí a chave para se entender a afirmação que se contém num dos versos do Canto 45: foi das vísceras que os cantos provieram...

Com efeito, nos mais de 70 cantos que formam a totalidade do poema de Fernão Ferreiro, pode-se ver que o seu processo de elaboração foi visceral e desgastante, até dolorosamente visceral, mas, sobretudo, fulgurante. Esta verificação não é gratuita, porque tem a fundamentá-la a literalidade dos Cantos.

*

O processo de incorporação dos Cantos a este Memória das Cinzas se fez pela leitura e releitura dos primeiros, selecionando-se versos para apropriação à prosa. A ideia, portanto, foi a de elaborar um texto que dialogasse com os versos do Poeta (que neste romance aparecem transcritos em itálico), num ambiente meio de sonho, meio fantasmagórico, e num tempo e num espaço indefinidos. As referências às ilustrações de Gustave Doré visam a suscitar, no espírito dos leitores, um diálogo imagístico entre o estilo que caracteriza as conhecidas gravuras do célebre ilustrador francês e o clima irreal em que se desenvolve a narrativa desta memória.

Nessa viagem onírica, foi também inevitável que o pensamento subisse a Dante, e que algumas leituras dos cantos da Divina Comédia tivessem de ser feitas, para colher mínimas achegas adicionais (3). O mesmo pode ser dito das consultas feitas, ao arrepio dos olhos, a Eliot (4). Bem a propósito, na hora H em que me absorvia no texto da memória, caíram-me nas mãos os Diálogos entre Borges e Sabato (5). Da minha estreita e saudosa convivência com Renato Pacheco, de quem Fernão Ferreiro é o heterônimo máximo, permito-me agora dizer que resgatei frases e retalhos de conversas que da saudade retornaram ao nosso encontro póstumo. 

Como não sou poeta, as investidas poéticas que aparecem no livro acabaram tornando-se uma surpresa para mim, sem que a seu respeito pretenda externar qualquer juízo de valor literário. Acho que todo poeta se faz com muito empenho e doação de si mesmo, e os poemas nascem deste esforço incansável e diuturno que é luta ardente em busca da palavra exata, da forma certa, do verso perfeito.

Uma das epígrafes do livro, colhida a Borges, procura captar esta atmosfera do fazer estético, embora faça menção geral à dificuldade que é a feitura de toda e qualquer arte e não apenas da poesia em particular, de que trata este romance.

Uma satisfação eu tive: antes de eleger a epígrafe borgeana, e antes de lê-la, já a tinha escrito nestas memórias sob a forma a poesia é árdua. Borges, com seu descortino maior, ampliou para mim o seu sentido e abrangência.

No mais, este romance representou um reencontro sentimental (além de uma releitura) com os Cantos de Fernão Ferreiro, obra que se pode considerar prima no acervo da poesia capixaba – e quem já a leu há de certamente endossar a validade desta afirmativa.

Mas devo dizer, para terminar, que julgo modestamente que estas memórias não se restrinjam apenas a um preito de louvor ao texto de Os Cantos de Fernão Ferreiro. Se toda história é a história de uma busca, a história deste livro é a da busca da poética pelo narrador-personagem que nela se empenha e que realiza o aprendizado que lhe foi possível alcançar na forma como este aprendizado se revelou ao aprendiz-poeta. E, neste sentindo, a busca da poética, mais do que uma história, pode ser uma conquista.

 

Referências:

1. Cantos de Fernão Ferreiro, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, Ufes, Vitória, Espírito Santo, 1985.

Assim começam os Cantos:

Canto zero

Agora tudo é novo e ao longe nos conduz.
Nesse lago cabem todas as poéticas.
Colombo ainda tarda a chegar e o Paraíso
–  como tantos, mais um falso paraíso –
lá está, está lá, a oeste, no poente.
Do mar os capixabas caminham para Rondônia,
atravessar os Andes será um passo a mais.
Gilles de Rais foi o começo de tudo,
Mariscal, em busca da pedra filosofal,
passou a procurar lá-bas o que se achava em cima,
passou a procurar out o que se encontrava dentro.

É mundo mau, mundo luz, mundo louco.

2. Poema Graciano, in Revista Letra, nº 2, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, Ufes, Vitória, 1982.

Assim começa o Poema Graciano:

Ondas do mar de Vigo,
o poema começa comigo.

Começa mas não começa,
que antes do primeiro verso
vêm todos os testamentos
de quem passou pela morte e não morreu.
Bem como antes destas ondas
vêm ondas tantas,
cabelos de tempo e de oceano,
que vão desta barba à cabeça de Orfeu.
Ou por outra:
antes de cada palavra
vem sua etimologia,
antes de um pensamento
vem toda a mitologia,
antes do poema —
a poesia.
Não tem começo
esta biografia:
não tem início
e aqui se inicia.

3. Divina comédia, texto integral, tradução de J. P. Xavier Pinheiro, Martim Claret, São Paulo, 2006. 

4. Poesia, T. S. Eliot, tradução de Ivan Junqueira, Editora Nova Fronteira, 3ª edição, Rio, 1981.

5. Diálogos, Borges Sabato, organizado por Orlando Barone, tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, Editora Globo, São Paulo, 2005.

 

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