José Carlos Oliveira em cinco crônicas

José Irmo Gonring

 

De novo sob o sol

A Bíblia era o livro de cabeceira de Clarice Lispector. Artista que era, devia ter o “Eclesiastes” entre os seus livros preferidos. José Carlos Oliveira lia o “Eclesiastes”. E tomava vinho junto.

A importância que escritores dão a esse livro, seja pelo conteúdo e forma, pode ser medida pela transposição criativa que o poeta e ensaísta Haroldo de Campos fez do “Eclesiastes” para o português, na busca de equivalentes poéticos para o texto original. (“Qohélet = O-que-sabe”. São Paulo: Perspectiva, 1991.)

Eu deveria reler o “Eclesiastes”. E não teria cometido a impropriedade da crônica passada, ao relacionar o título “O sol também se levanta”, de Hemingway, ao versículo de um salmo. Na verdade, vem de “Eclesiastes” (1,5).

- Tudo bem - dirá você, condescendente leitor. - Tudo é da Bíblia mesmo. E, ademais, esses livros têm um parentesco, na linguagem poética e na sapiência do conteúdo.

Na verdade, a informação me foi passada por um professor, há umas quatro décadas. O que sempre me incomodou. É que eu nunca vi esse versículo em um salmo. Seja em português ou latim.

Incomodava, mas nunca chequei. Só depois de a crônica sair é que resolvi tirar essa dúvida.

O certo é que, a partir de então, a par da satisfação ao leitor, minha percepção pode ter sido aguçada.

Se não fosse, como se explica de eu entrar naquela biblioteca que frequento com certa regularidade e corro logo o olho na estante perto da porta e vejo - agora está lá, me olhando - o “Eclesiastes”?

- É um sinal - dirá alguém, mais para o esotérico. Você deve escrever sobre o “Eclesiastes”.  Aproveita que está na Quaresma e...

- Quem sou eu. Eu teria que pesquisar muito, estudar a época. E se eu não ler os livros sagrados em diálogo e na sua dinâmica histórica, vou ler errado.

Outro, padre ou pastor, mais cioso de certos mistérios da salvação, dirá:

- Sim. É isso. O livro da estante é tentação. Aparece como algo bom, como se fosse um sinal, mas no fundo é para você escrever um monte de bobagens e piorar o soneto e desencaminhar as pessoas da leitura desse belo livro.

Aí alguém como o analista Rui Perini pode ser mais incisivo:

- Puro ato falho. Você na verdade queria voltar ao assunto.

Pode ser uma coisa. Pode ser outra. Pode até ser o alemão me rondando. O professor lá atrás deve ter falado mesmo “Eclesiastes” e eu agora aqui com o Alz... na minha cola confundi com os “Salmos”.

O certo é que - e isso sei um pouco - se eu ler o “Eclesiastes” somente com meu olhar leigo, eu vou  é convidar o leitor a enfiar o pé na jaca.

Com esse olhar, o “Eclesiastes” seria entendido na visada pessimista do entediado pelo muito estudo. (Ah, quisera que fosse, no meu caso. Não o tédio. O muito estudo.)

Clarice, que lia a Bíblia, ensinou a diferença entre beber e embebedar-se. Está em “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”. Carlinhos Oliveira lia só a fatia do “Eclesiastes” e tomava todas.

Aqui posso estar cometendo uma grande impropriedade. Mas esta é deliberada. É um pré-texto para voltar a falar dos intelectuais da “geração perdida”.

Para recolocar Carlinhos Oliveira no circuito, às vésperas dos 25 anos que ele abandonou a “fiesta”. 

Escrita em 24 de março de 2011.

 

O boêmio e o abstêmio

Fechei a última crônica com uma impropriedade proposital, para voltar ao assunto “geração perdida” e José Carlos Oliveira, que abandonou a “fiesta” há 25 anos, no dia 13 de abril de 1986, com apenas 51 anos.

Disse escrevi que Carlinhos Oliveira lia uma fatia da Bíblia, o “Eclesiastes”, e tomava todas. Como a sugerir uma relação de causa e efeito. (Possível, até, em espíritos mais sóbrios, mas não nele, embriagado de perdulário brilho.)

Na verdade, José Carlos Oliveira não tomou todas a vida toda. Seus últimos anos de aventura neste mundo de Deus foram de lei seca, por força de uma pancreatite, mal que o nocauteou. Mudou inclusive de endereço: do circuito Ipanema/Leblon para a Vila Isabel.

Abstêmio absoluto, Carlinhos Oliveira passaria então a tomar chá, compulsivamente. Arrastava consigo uma garrafa. Era o que fazia quando dirigiu uma oficina literária em Vitória, na Biblioteca da Ufes. Tragava seus golinhos a cada 10, 15 minutos.

Carlinhos pode ter sido leitor de uma reduzida fatia da Bíblia só em sua melhor fase boêmia, porque nos últimos anos de sua “desaventura” ele procurou com sofreguidão uma conversão ao catolicismo. Chegou a morar num monastério.

E seria impossível passar por essa crise imune a outros grãos na seara do sagrado. Pelo texto que transcrevo a seguir, publicado no “Jornal do Brasil” (11/05/1997), dá para sentir o tamanho de sua crise religiosa e de suas possíveis leituras, para além do “Eclesiastes”:

“[...]Peço de joelhos a Nossa Senhora de Fátima que me restitua a decência por mim malbaratada; a Santa Teresa de Lisieux que me ensina (sic) o caminho da salvação; a Santo Antônio de Pádua que purifique a minha língua; a todos os santos e anjos que vençam, por mim, todos os demônios que se apossaram de mim; a Jesus Cristo Nosso Senhor que não me deixe apodrecer nesta vida e na eternidade do inferno para além desta vida. [...] 28 de janeiro de 1985. Eu pecador, José Carlos de (sic) Oliveira, filho de Pedro Pinto de Oliveira  e de Maria Tristão de Oliveira [...].”

Esse texto foi endereçado à família, em Vitória, pouco mais de um ano antes de sua morte, como reza a supracitada data.

Esse assomo de religiosidade do texto intimista não aflorava assim exacerbado nos contatos que José Carlos Oliveira mantinha, pessoal e profissionalmente, nos últimos meses de sua vida, em que trabalhou na cidade onde nasceu e viveu até os 18 anos: Vitória.

Mas coração é piso que ninguém... Por exemplo: nos finalmentes, quando era levado para o hospital, no dia da Festa da Penha, lamentou: “Logo hoje, no dia de minha madrinha".

Enfim, o real comprometimento de José Carlos Oliveira com o sagrado é um campo meio nebuloso. Assim como é difícil pesar as verdadeiras intenções religiosas do papa da “geração perdida” na Paris dos anos 20, Hemingway, em “O sol também se levanta”. Já a partir do título, tirado do “Eclesiastes”, mas principalmente porque os dois personagens de mais peso rezam.

O que dá para mensurar é o calibre de seus copos. Por mais que se esforçasse, Carlinhos Oliveira ficava muitíssimas  doses atrás do jornalista e escritor americano. Perto de Hemingway, ele era um amador. 

Publicada em agosto [de 2011], em função dos 25 anos do aniversário de morte de Carlinhos.

 

Uma pena especial

A oficina de crônica é uma coisa muito simples. Os alunos do curso de Comunicação da Ufes se matriculam em Jornalismo e Crônica e começam a produzir textos e a mostrá-los para os confrades. Que comentam.

É uma disciplina optativa, mas as aulas são obrigatórias, no limite da instituição. Já fizemos mais de meia dúzia.  

O programa inclui leituras. De crônicas, claro. Servem como modelos. Entre os autores, a ênfase é José Carlos Oliveira. Ele é a base para o estudo do cronista em estado bruto.

- O que é o cronista em estado bruto?

- O que não é lapidado - dirá rápido no gatilho o Guilherme.

Digamos que o cronista já foi lapidado, sim. No sentido até original do termo: levou muitas pedradas da vida. Mas o bruto, aqui, diz respeito ao cara que tem que publicar um texto todos os dias. Nem tem tempo para essa prática incestuosa, mas conveniente, que é “dormir com a crônica”.

Dormir com a crônica é o tempo em que ela nos pega na “madorma” (palavra italianada usada por minha mãe que eu acho ter o sentido de vigília) e nos cochicha no ouvido:

- Troca essa palavrinha aí. Muda o nome da personagem ou coloca só as iniciais. O título fica melhor assim.

E há casos mais radicais em que ela diz: troca tudo. Me troca por outra, ou nem venha mais dormir comigo.

José Carlos Oliveira, em 1968, escrevia seis crônicas por semana. Deve ter ido muitas vezes solteiro para a cama. Assim, a gente lê os textos daquele ano e tenta classificar, por mês, os melhores, os piores (tarefa difícil) e os mais jornalísticos (alguém inventou que “crônica é jornalismo e literatura”).

Para que isso? Para destravar a criação da turma. Para mostrar que esses textos são quase que um diário, que tudo pode ser assunto, de dentro ou de fora de si. E que nem todos os dias são de “inspiração”. Entendemos ser bom mostrar também as rasuras, em vez de “as melhores de fulano”, “as cem melhores do Brasil”. (Os textos escritos em 1968 foram recolhidos no livro póstumo “Diário da Patetocracia”, editora Graphia).

A mocidade com quem trabalho passa a conhecer e curtir “Carlinhos”. Ri com ele. Admira seu estilo, sua coragem, e o considera melhor que Verissimo. Sinto que gostam de saber que ele convivia com companheiros da noite como Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes.

No mais, mostra-se ao candidato a cronista que ele precisa estar atento. E, diante da necessidade de produzir, entrar em tensão criativa. Então o tema vai saltar aos olhos. E se dirá, estalando o dedo médio no polegar: “Isso dá samba!” Depois, é só “apurar”, pesquisar, ligar o botãozinho da imaginação. E arrumar uma estratégia para narrar. Dá trabalho.

O pessoal chega devagar e aos poucos vai se soltando. Alguns logo, outros até a metade do curso, uns raros na reta final, mas todos se salvam. A percepção vai ficando aguçada. Os temas vêm, e ganham a pena.

É uma oportunidade para os futuros jornalistas saberem quem foi José Carlos Oliveira. E terem um bom modelo de texto. E alimentar o sonho de que é possível crescer  intelectualmente, apesar das dificuldades. Ele foi menino pobre e, quando se mandou para o Rio de Janeiro, aos 18 anos, era já um cronista pronto e repórter que logo conquistou o respeito na capital da República. Estará sempre entre os melhores do jornalismo nacional.

Isso tudo porque foi um exemplo de leitor. Então, a oficina pretende, também, incentivar o gosto pela leitura.

Enfim, a oficina é uma homenagem permanente a José Carlos Oliveira, que completaria 80 anos dia 18 último. Mas nos deixou em 1986, aos 51 anos. Que pena! Uma senhora pena.

Publicada em agosto de 2014.

 

Carlinhos Oliveira

Saí de bicicleta pela avenida beira-mar, segunda-feira. Motivo: a Festa da Penha e os 29 anos sem José Carlos Oliveira, o escritor e jornalista capixaba que fez carreira e fama no Rio de janeiro.

Foi também redator publicitário na poderosa e universal McCann Erickson, mas optou pelo jornalismo em tempo integral, adiando sua vocação de romancista.

E esbanjou prodigamente o que ganhava, como um dos boêmios mais profissionais da noite carioca.

Aos 51 anos, a saúde abalada, voltou para Vitória. Na época de Festa da Penha foi hospitalizado, passando pela avenida que tem agora uma pista demarcada para a circulação de bicicletas aos domingos e feriados.

José Carlos Oliveira saiu de Camburi, hóspede que era do Hotel Porto do Sol -  então de seu fundador, João Dalmácio, amigo da turma de Jucutuquara  -  e seguiu para o Centro de Vitória: Hospital da Associação dos Funcionários Públicos.

Estava no carro do escritor Reinaldo Santos Neves. E se deu o fato que transcrevo de sua biografia, assinada por Jason Tércio:

“No carro de Reinaldo, rodando pelas ruas calmas (era feriado de Nossa Senhora da Penha), Carlinhos estava sereno, até avistar da janela do carro o Convento da Penha no alto do morro. Chorou.

- Que foi, Zé Carlos? - perguntou Reinaldo.

- Logo hoje isso foi me acontecer, logo hoje, no dia de Nossa Senhora da Penha!”

O médico Benito Zanandrea pedira sua internação. Receberia alta quatro dias depois, mas retornaria ao hospital na madrugada do domingo, 13 de abril,  para despedir-se deste mundo, após as duas horas da tarde.

Então esse foi um dos últimos trajetos de José Carlos Oliveira em Vitória, a cidade onde nascera 51 anos antes (1934) e aos 16 anos já tinha seu talento como cronista e intelectual reconhecido pelos adultos ou moços mais velhos que ele. Por isso ganhou o apelido de “Zé Precoce”.

Precisamos nos preparar para uma bela homenagem a ele no ano que vem, nos 30 anos de sua despedida.

Devemos isso. No ano passado, nos 80 anos de seu nascimento, a única homenagem - apesar de magnífica - foi um artigo de duas páginas do escritor Guilherme Santos Neves, no caderno “Pensar”, deste jornal, com foco no “Diário Selvagem”, livro póstumo.

Por que celebrar esses 30 anos? Não podemos deixar no ostracismo quem ajudou a construir o jornalismo e a literatura deste país.

Alguma lição temos que aprender com ele. Ninguém fica por mais de 20 anos sendo o colunista do principal jornal do país dos anos 60 e 70 a troco de nada. Na época que escreveu menos, foram três vezes por semana, alternando-se no “Caderno B” com o maior poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, que comparecia duas vezes, e Clarice Lispector (por seis anos), uma vez por semana.

Alguma lição temos que aprender com quem vendeu 20 mil exemplares do livro “Terror e Êxtase”, que em poucos meses chegou à quarta edição, em 1978. Isso num país em que não se tem o hábito de leitura.

Quem conseguiu esse feito, na época? Quem, ainda hoje? Livro no máximo tinha tiragem de três mil exemplares e levava alguns anos para vender toda a edição. Isso, dos bons autores.

A obra virou filme, dirigido por Antônio Calmon. Ele escreveria mais três romances. Fora os livros de crônicas e contos, publicados em vida e postumamente.

Dele, Carlos Heitor Cony disse: “De todos os autores brasileiros atuantes nos anos 60 e 70, Carlinhos Oliveira foi o que mais mergulhou no seu tempo”.

E, no entanto, ele é desconhecido em sua terra, onde dá nome ao teatro do Centro Cultural Carmélia. Por isso, tenho certeza que as instituições não vão deixar passar em branco essa data.

Publicada em abril de 2015.

 

Pássaro em três tempos

O pássaro impresso na pista. Isso não é raro aqui no bairro. O que é uma prova de que não invento quando falo que há muitos deles por aqui. Pássaros tão despreocupados que se deixam colher em plena rua, andando ali como se fossem gente.

De tão achatados, prensados, nem dá para dizer que ave é. Mas algumas reconhecemos. São as rolinhas, essas desavisadas. Essas que acham que a vida é ficar comendo a canjiquinha farta que colocam por aí.

Vi agora mais duas delas nocauteadas na minha rua.  O seu feitio é de uma ave empalhada. Mas o pássaro que encontrei antes numa transversal estava muito bem posto, com parte da carne rosada à mostra, e as perninhas bem esticadas. Como se estivesse assim pronto para uma selfie.

Eu não posso continuar a falar desses pássaros extintos, sem lembrar de que é um rumor de asas a menos se recolhendo nas folhagens das mangueiras. Que é uma clarinada a menos na alvorada do mundo.

Então vou falar de outro pássaro, o impresso nas páginas de um livro. Seu autor faria 81 anos dia 18 de agosto, a última terça-feira, não nos tivesse deixado tão cedo, aos 51 anos. Falo de José Carlos Oliveira, como o fiz em abril, nos 29 anos de sua morte. Se insisto no assunto, é porque me atribuí um pouco a tarefa de dar manutenção a sua memória, sempre que posso.

Vou lembrar um fato, dos últimos que protagonizou, em Vitória. Ele estava conduzindo uma oficina literária na Ufes, como parte do projeto Escritor Residente. Debilitado, não chegou a finalizá-la. Mas sua partida foi de certo modo anunciada aos seus “confrades”, como os chamava.

Assim: ele teminara um conto para a contracapa do livro “Bravos companheiros e fantasmas”, a outra parte do projeto Escritor Residente. Ninguém faz um conto específico para esse espaço. Mas ele fez. Era parte de sua busca de originalidade.

Leu para a turma esse texto que fala de um pássaro extinto da floresta extinta. O pássaro que, assim, ficou sem lugar para um pouso decente. Deslocado, migrante, os “caçadores de inocentes escolheram o pássaro enigmático para alvo predileto”. 

O texto, muito enxuto, de forma econômica flagra o clima de um mundo desolador. Era como se prenunciasse seu fim. “Coitado do pássaro enigmático. Ainda não percebeu que sua hora já era, e também sua era, e atmosfera.” Texto lido, acentuou-se aquele solene silêncio na sala.

Foi quando um bando de pássaros gralhantes sobrevoou a noite da Ufes. E ele colocou uma legenda nesse fato, imagino que levantando um dedinho: “O pássaro enigmático”. (Eu não estava lá, mas me contaram.)

Mas José Carlos Oliveira não gostaria de ser lembrado com assunto triste. E aprendemos com Machado de Assis que males não fazem bem à crônica. Nas raríssimas vezes em que comentou um crime, por exemplo, o maior escritor brasileiro aliviou o final. Ele comparava o punhal de Martinha - a mulher que “furou” o homem que a assediava, no interior da Bahia - com o de Lucrécia, mostrando a disparidade de status das duas armas. Mas fecha o texto com um daqueles momentos que só encontramos nos seus melhores romances:  

“Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas...”

Bom, os pássaros “impressos” nas pistas daqui são bem reais. Gente, vocês precisavam ver o da selfie, com as perninhas esticadas como se fossem as mãos de que não se poderia valer.

Esse pássaro. Esse arrulho a menos no entardecer.

Publicada em agosto de 2015.

 

Leia outros textos

Voltar