A longa história, de Reinaldo Santos Neves

A longa história renova a literatura brasileira ao buscar aquelas raízes de nossa cultura que remontam à longínqua e, no entanto, tão próxima Idade Média europeia.

Reinaldo Santos Neves produziu esta obra extraordinária, para a qual, se formos buscar parâmetros, teremos de buscá-los não naqueles romances que abordam a Idade Média por ângulos de apelo fácil, mas em obras mais densas e sofisticadas – e não menos empolgantes – como O eleito, de Thomas Mann, e O nome da rosa, de Umberto Eco.

A inspiração para a Idade Média aqui representada não está nos ciclos de romances de cavalaria e de mitos e lendas da literatura medieval, nem nos grandes e sangrentos conflitos que marcaram a história desse período, mas em textos despretensiosos e, por isso mesmo, pouco conhecidos do grande público: crônicas obscuras, relatos de viagem, vidas de santos, autobiografias de pessoas hoje esquecidas, coletâneas de contos morais, tratados de etimologia e gramática, registros da vida monástica e a poesia escrita em latim medieval por poetas de várias nacionalidades.

Assim, em vez de cavaleiros andantes e guerreiros da fé cristã, de magos e feiticeiras, de amantes predestinadamente trágicos, os personagens deste romance são pessoas comuns, configuradas em sua simples e complexa dimensão humana: monges, marinheiros, poetas, peregrinos, prostitutas, estalajadeiros, salteadores, artesãos, lavradores, leprosos e muitos outros.

Entretanto, se dentre eles sobressaem as figuras do noviço Grim e de sua jovem companheira de aventuras, que tudo arrostam para cumprir a tarefa que lhes foi imposta – copiar uma história e trazê-la para uma velha condessa ler –, o principal personagem é, sem dúvida, a própria Longa História, com tudo que ela representa: o fascínio que a literatura exerce sobre todos nós desde que o ser humano começou a inventar histórias.

Para os leitores que, como a condessa de Kemp, estão em busca de algo inteiramente novo em literatura, este é o romance certo: único e sem paralelos.

 

Uma curta palavra sobre A longa história

Luiz Romero de Oliveira (Salsa)

Walter Benjamin havia observado, no início do século XX, com alguma melancolia, que a sua época estava marcada pela incapacidade de contar estórias. Já não era possível ouvir relatos e partilhar as experiências vividas por si ou por outrem, descompromissados com o tempo, em torno de fogueiras ou nas oficinas manufatoras. O ambiente moderno – com suas fábricas, automóveis, velocidade tecnológica, unidos ao discurso utilitário – estava sepultando a habilidade milenar de narrar eventos, reproduzir mistérios, trafegar por lugares distantes e desconhecidos.

Reinaldo Santos Neves, em sua Longa história, parece se compadecer e ao mesmo tempo relutar com a melancolia do pensador alemão. Reinaldo, como um bom contador de estórias, resiste ao presságio de Benjamin. Ele se imbui, então, da tarefa de nos transportar a um universo no qual contar estórias está intimamente ligado à sobrevivência dos homens. Com uma estrutura narrativa medieval e num ambiente idem, que nos permite pensar em Decameron e em Contos de Cantuária devidamente relidos numa perspectiva borgiana, o autor capixaba constrói um texto envolvente perpassado de paixão pelas letras e pelas histórias ­– uma voraz paixão por histórias, melhor dizendo – que nos faz repensar o lugar por elas ocupado em nossas vidas.

Os personagens desse bem-vindo romance – escribas, monges, prostitutas, salteadores e nobres – são seduzidos e seduzem com a arte de narrar. É com ela que eles conseguem se manter vivos num mundo que se mostra prenhe de armadilhas. Armadilhas que são forjadas também por histórias. É com elas que Reinaldo Santos Neves transforma o seu romance em um labirinto que guia astuciosamente o olhar do leitor no sentido da reapropriação daquilo que Benjamin considerava perdido: o prazer de contar e ouvir estórias.

 

A longa história: uma orelha virtual

Fernando Achiamé

Leitura prazerosa e enriquecedora está assegurada a quem percorrer os longos caminhos deste livro. Aproveitando elementos medievais autênticos – histórias, personagens, canções, costumes, poemas, crenças, etc. –, o autor construiu uma obra de ficção que encanta, ilude, toca a emoção e apela para a inteligência, tudo bem ao gosto deste início de século. Quer dizer, a História viva fornece dados para a criação de histórias fictícias. Mas que histórias são essas? Posso adiantar que são muitas e uma só: a busca empreendida pelos homens desde sempre para dar algum sentido às suas existências.

A longa história revela uma Idade Média que nunca existiu – mas que, em termos ficcionais, é inteiramente verdadeira – e o faz através de descrições exuberantes de paisagens para nós exóticas, achados linguísticos, riqueza imagética, tramas (porque são muitas) de surpreendentes desfechos. Este é um romance que possui definida “cor local”, se é que podemos aplicar essa expressão ao Medievo europeu, e certeira característica universal por tratar das alegrias e das misérias humanas.

Reinaldo Santos Neves nos transporta para diferentes universos. Conduz-nos sutilmente por mais de dois mil quilômetros de caminhos cheios de aventura e de poesia, fazendo-nos durante todo o trajeto conviver com personagens, lugares e acontecimentos inusitados – um mundo novo no Velho Mundo medieval. Depois, ao compartilharmos com o autor narrador muitas e muitas páginas, deles nos fazemos cúmplices no serviço da arte literária; ou seja, a carpintaria do romance está inteiramente à mostra, mas essa “verdade estrutural” será dividida com você, quase leitor, e certamente há de surpreendê-lo. O romancista também nos encaminha para o interior de nós mesmos, mas não em termos de uma autoajuda água com açúcar, tão em moda ultimamente. É que a densidade destes relatos fictícios nos leva verdadeiramente a modificar nosso olhar sobre a realidade na qual estamos inseridos, e essa mudança na “visão de mundo” é sempre enriquecedora.

A história é longa, reconheço, mas não cansa. Ao contrário! Histórias saem do interior de histórias e no final fica um gostinho de quero mais, e aí não tem jeito: é esperar o próximo romance do autor – que já nos promete uma volta à Idade Média com o épico A folha de hera – ou dar um tempo e reler estas páginas.

Dito isso, leitor amigo, mergulhe na viagem que lhe oferece este livro se você gosta de passar momentos agradáveis consigo mesmo e a um só tempo crescer interiormente. Não é para isso afinal que serve um bom romance?

 

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