Fantasia cinéfila extemporânea

(Classificação: para vitorienses e agregados maiores de 60 anos)

Os paralelepípedos da Praça da Independência, (ex-Costa Pereira), afloraram à terra e as palmeiras sorriram.            

Espanto.

Pela primeira vez nos últimos sessenta anos elas sorriram e piscaram para os ditos cujos. Um momento ímpar porque acenderam naqueles dois elementos fundamentais do mais famoso logradouro público da cidade há sessenta anos a esperança de que em breve eles e elas chegariam para a ciranda do amor.

A tarde espremida por neurastênicos calhambeques aguardando o sinal verde defronte o Café Simpatia ameaçava ir embora. O mar de lata pintada se enfurecia, sem qualquer resultado, porque o sinal não abria e o horário da novela radiofônica “O direito de nascer” se aproximava inexorável. No Banco Hypothecario e Agrícola o contador ainda não tinha conferido o “livro razão” incluindo o movimento do dia. Só depois disso viria o salvo-conduto para que saísse do trabalho. Daria tempo de ir ao cinema?

Muito atrasada a colocação do cartaz da noite no frontão do Cine Glória, pintado com aquela aguada tinta azul. Atrasada porque Jeanette MacDonald, a cantora que estrelaria o filme daquela noite, amanhecera muito resfriada e não dera certeza de aparecer.

Desconsolado, Nelson Eddy, seu companheiro de filme e de cantoria, foi visto comendo um quebra-queixo na bombonière ao lado do prédio do cinema, com uma furtiva lágrima escorrendo do olho direito. Perguntado se apareceria para o filme daquela noite, preferiu não dizer nada. Mas estava claro que não se sabia se “Divino Tormento” seria mesmo exibido hoje. Do lado de dentro do balcão do estabelecimento comercial (era íntimo do dono), um homem o observava. Estava incógnito, mas não para os que assistiam às matinês dominicais. Tratava-se do cowboy Charles Starrett cujo cartaz de propaganda de seu filme “O forasteiro” fora colocado num canto escondido de uma parede lateral do Glória, já que não constava da programação do nobre cinema. Era apenas “chamada” para uma remota matinê. Todavia a inesperada gripe da diva Jeanette abria uma possibilidade do Starrett se apresentar no “Glória” e, afinal, se livrar do poeira do Parque Moscoso, isto é, do barraco de zinco chamado Politheama. Sua esperança se baseava no fato de que o filme que substituiria “Divino Tormento” seria “Cidadão Kane”. Pelas seguras informações que tinha, tal filme não chegaria a tempo porque o trem da “ Leopoldina Railway” que traria a película do Rio havia descarrilado numa cidade próxima ao Morro do Coco e, assim, o proprietário do cinema não teria outro remédio senão exibir O Forasteiro”, cujas latas estavam ali mesmo na bombonière do Cícero. Era só dar as oito horas que ele as levaria como tábua de salvação para a noite cinematográfica. Charles observou Nelson, que não o conhecia. Eram artistas de cinema, mas de categorias bem distintas. Enquanto ele comia feijão com arroz e carne-seca na cantina do pessoal de baixo, como artista de terceira, o Eddy frequentava os finos restaurantes do último andar da Metro Goldwin Mayer. “Tchau boboca. Chegou minha vez” - pensou ele. Depois de assistirem a O Forasteiro” ninguém mais poderia querer ouvir o canto xaroposo desse falso artista. “Good bye, baby”.

Mas, de súbito, um alarido se levanta pelos lados da Praça da Independência. O que é, o que não é. Ouve-se a princípio uma tímida voz feminina. Ah, sim, uma canção que não demora em se transformar na bela canção, Rosemarie”. A formosa Jeanette MacDonald, num diáfano e esvoaçante vestido branco, saíra do Hotel Império e vinha pela praça, acompanhada de um séquito de adoradores. Avançava em direção ao Glória e entoava a célebre canção que a eternizara.

Subitamente despertado de sua letargia, Nelson Eddy esboça um tímido sorriso que logo se transforma num imenso sorriso de satisfação ao identificar na bela música que vinha do lado da praça a voz de Jeanette. Nelson vai para a porta da bombonière e logo em seguida corre em direção à praça onde encontra Jeanette. Ouve-se então o belo dueto de “Rosemarie que seria cantado, sim, gloriosamente, na sessão das oito do Cine Glória no filme, sim, “Divino Tormento”.

Em todo esse esplêndido espetáculo um personagem não podia esconder sua extrema frustração, o tal do Charles Starrett, o mocinho dos filmes de cowboy do Politheama que, assim, perdia as esperanças de ver “O forasteiro” substituir o filme da noite, ameaçado pela gripe da estrela. Chegou a coçar o seu Colt 38, mas desistiu e saiu para o lado do cais das barcas envolto num manto de decepção. Dizem que foi encontrado, derreado na mesa de um boteco em Argolas. A seu lado uma garrafa vazia da cachaça “Chora na Rampa”.  

 

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