Laura

A pergunta: “Laura, a música do filme, conhece?” O interrogado faz cara de “hein?” Paciência porque o desconectado é você. Aparentemente habitam o mesmo planeta, mas em órbitas e fontes de suprimento emocional um tanto diferentes. Mas até mesmo “Laura” que, pensa você, como no poema, é um daqueles fenômenos que ”Se vão do poder da Morte libertando”? Mera pretensão do time do “ah, no meu tempo”, como visto na reação do tal interrogado, que é homem de bom gosto? Mas está convencido de que “Laura”, embora ícone de um planeta que você habitou um dia vai se transformar num item do humano eterno e superar sua condição de crachá dos anos quarenta/cinquenta. As dificuldades atuais seriam apenas de comunicação. No futuro, ouviremos “ah, sim!”, ao invés de “hein?”

Continuando o capítulo “Laura”: no século atual, precisamente ontem, você estava debaixo do ventilador para tentar fugir desse calor que tanto detesta. Na TV passava um velhíssimo filme biográfico. Meu Deus, como eram medíocres essas histórias americanas contando a vida de alguém e que deveria estar contida na fórmula a + b de uma equação com resultado de x por cento de emoções computadas a tantos centavos de dólar por segundo. A preguiça de procurar o controle e mudar de canal o fez continuar assistindo ao filme. Veio a primeira surpresa: descobriu que se tratava da vida do jazzista Charlie Parker. Bem, quando tentou uma comunicação musical com o planeta contemporâneo, lembra que seguiu opinião de seu amigo Reinaldo, expert em jazz. Comprou um cd do Parker. Mas não deu liga. Mesmo. Sons, como direi, eu que não pesco nada de teoria musical? Não sei o que dizer. Limito-me ao “não gostei”, maneira que pretendo aceitável de avaliação de uma obra de arte, em especial quando se é acossado por uma barafunda sonora numa das performances do senhor Parker no tal filme. (Onde está o desgraçado do controle, perdido entre jornais e livros em cima da cama? Aquela menina que arruma a casa deve ter feito alguma bobagem.) A barafunda continua. Pior que num dia antigo disse que gostava de jazz e até discutia com o querido mano Tite, apaixonado por ópera. Mas o que era jazz para mim que comprava as bolachinhas de 78 rpm na casa Guarany da Av. Capichaba, talvez o único lugar da cidade que vendia discos “avançados”? Óbvio, Frank Sinatra em “My Way”, Nat Cole do King Cole Trio em “Embraceable You”. Ahan? Billy Eckstine em “Body and Soul”? Sempre desconfiou que ele era apenas um “gritão”, mas botava o disco assim mesmo porque tinha poucos. Quando ouviu Ella Fitzgerald cantar essa música, teve certeza de que sua desconfiança era fundada. Eckstine era apenas um “gritão”. Quem mais? Havia uma “Road to Mandalay” composta por um soldado americano servindo na Birmânia, na Segunda Guerra, e puro jazz para mim (que diria Rimsky-Korsakov?) era o “Vôo do Besouro” no trompete de Harry James. Também “In a Little Spanish Town” e, claro, “Laura”.  Naquela época, em minha casa de Jucutuquara, José Carlos Oliveira, antes de se tornar escritor nacional, pedia para repetir certo disco de Frank Sinatra até gastar a agulha no toca-discos Garrard. De maneira que (onde está o controle?) aqueles sons que vinham da televisão com um Charlie Parker porejando suor e todas as dores do mundo eram apenas um tormento. Ora, esses antigos filmes biográficos de Hollywood... Então, aconteceu. Distraí-me um pouco e, incrível, o mesmo Charlie Parker tocava no saxofone (não acredito) “Laura”. Será que dormi com o filme chato? Não era sonho. “Laura” inundava meu quarto de beleza. Pensei: gostaria que Paulinho Coutinho estivesse vivo para lhe dar, hoje à noite, a notícia sensacional de Charlie Parker tocando “Laura” de uma forma inacreditavelmente bela. Falaria disso com Álvaro Barbosa que, naquelas madrugadas de conversa fiada na beira da vala da velha Jucutuquara, gostava de falar de filmes a que só ele teria assistido, como O prisioneiro de Zenda ou A tentação de Zanzibar, com Dorothy Lamour. Todos nós sempre embasbacados com a capacidade descritiva de nosso amigo. Mas, meu caro Álvaro – diria – acho que tenho uma novidade para você: ontem à tarde ouvi o Charlie Parker tocando “Laura”. Ele e todos os outros, estou certo, ficariam emocionados com o que eu falaria.

 

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