A visão trágica

Petrópolis em sua bandeja de pedra. Você que viaja de avião para o Rio, pouco antes da aterrissagem, olhe para a esquerda com atenção. Digo com atenção porque nas várias vezes em que olhei para essa esquerda de que falo, não vi nada demais. Porém uma vez aconteceu: ali estava Petrópolis aninhada em sua bandeja de pedra como a joia que realmente é. Falo de Petrópolis, mas lembro também de Teresópolis e Friburgo. Destas me lembro muito quando enclausuradas em neblinas imortais, sem falar numa sopa deliciosa enquanto lá fora rolava nas ruas um vento gelado. Pela vidraça, viam-se pessoas muito encapotadas. Nós ali, no “Rosa Amarela”, pensando na vida com a melhor maneira de suavizá-la, isto é, protegidos do frio e tomando uma fumegante sopa de aspargos no meio daquelas montanhas de sonho.

Então, o trágico. As tempestades do ano retrasado atacaram com incrível violência essas cidades e transformaram grande parte delas numa massa de lama e escombros. Bom, trágico, mas não irreversível, pensei.  Afinal o Brasil não é assim tão vítima de desastres naturais. Vamos confiar nas instituições responsáveis por dar assistências às populações atingidas. Logo Petrópolis e suas irmãs regressarão revigoradas às suas bandejas e nós poderemos voltar a desfrutar de suas delícias. Quem tem o vírus montanhês na alma, como este que vos fala, compreenderá.

Então, volta o trágico. Agora, por esses dias, apareceram na TV novas imagens daquelas cidades. Era como se a tempestade tivesse acontecido no dia anterior: a mesma massa de lama e entulhos. A explicação: desvio de verbas destinadas às reparações. Roubo. Outra explicação: alguns se aproveitam da declaração de emergência (fora a burocracia, bradam os heróis modernosos) e superfaturam. Não há licitações nem dinheiro que chegue.

Pensar em outra coisa, porque é dose.

Que tal um lugar do outro lado do mundo, bem longe na geografia e no tempo? OK, China: na época do Império Celestial. O Imperador, como Deus e seus mandarins, como uma espécie de apóstolos a transmitirem mensagens divinas e irrecorríveis aos obedientes cidadãos. Solo sagrado e impenetrável para estrangeiros, em especial bárbaros ocidentais que sequer eram recebidos pelos pedantes apóstolos do Celeste Império. As canhoneiras inglesas mataram pessoas, quebraram o gelo, casas e palácios com a truculência habitual dos guerreiros de sempre. Como subproduto, imposição de compra de mercadorias estrangeiras (provocando a erosão do artesanato) e o consumo de ópio. Mas os ingleses não estavam sozinhos na empreitada. Contaram com a colaboração dos mandarins que passaram a cobrar altas propinas. Mas foi nesse momento que a população descobriu que esses mandarins não eram apóstolos de coisa nenhuma, ou melhor, apenas apóstolos do próprio interesse. Tal circunstância foi considerada importante para a queda da dinastia Qing. Diria Karl Marx com sua dialética peculiar: “É como se a história devesse primeiro embriagar (com ópio) todo um povo antes de poder arrancá-lo de seu torpor milenar.”

.../...

China Imperial e Brasil estão bem distanciados, mas muitos de nossos mandarins insistem em aproximá-los.

 

Leia outros textos