Um dia ensolarado qualquer

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente, lembra Albert Einstein. O conselho mais sábio é o de que aproveitemos o dia de hoje, lembrando, com Sêneca, que cada dia é, por si só, uma vida. Jesus, mais sombrio e pessimista, resumiu que basta a cada dia seu mal.

Tenho tentado viver com alegria e leveza. Alguns fatos e seus protagonistas teimam contra minha paz de espírito, mas sou insistente, seguindo uma trilha adiante não importa que ladrem os cães à direita ou à esquerda do caminho, lembrando que tudo é simples, tudo é bom.

Advirto disso porque tenho afirmado não sentir saudade, crendo que não sentir é como um antídoto para a dor e a nostalgia doentia, que medram na alma e afastam do prazer do dia de hoje. Não viver no passado, no entanto, não me isenta de ser um saudosista contumaz. Tão frequentemente me traio que certa feita, conversando com Deny Gomes, ela disse ficar impressionada em como minha infância em São José do Calçado é um repositório de lembranças. Talvez seja por isso que algumas histórias da minha curta vida surjam como se tivessem acontecido hoje pela manhã.

Foi o caso de uma delas, cuja simplicidade é testemunha de sua grandeza. Deixem-me contar-lhes.

Dia desses estava dirigindo de São José do Calçado para Bom Jesus do Itabapoana quando, depois de uma curva, dei de cara com a lembrança ― não a saudade ― de um dia radiante de quase quarenta anos atrás. E aí o tom do dia fez o resto, e com pouco eu ouvia a voz de uma senhorinha simpática e sentia mesmo o cheiro de lenha queimada misturada ao cheiro de frango com quiabo exalando pela cozinha de chão batido.

Eu tinha quinze anos, pouco mais, pouco menos. Eu e um amigo resolvemos pegar o ônibus, saltar à margem da estrada e caminhar uns dois quilômetros para atender ao convite de nosso amigo Pelé para que o visitássemos. Ele insistia muito, queria muito que fôssemos a sua casa. Por isso fomos. Era a manhã de um domingo de janeiro, ensolarado como quê.

Quando lá chegamos, fomos recebidos com uma alegria que não se vê. Veio o Pelé, vieram seus irmãos e veio a avó, uma octogenária que cuidava dos netos como se fossem seus filhos, filhos de seu filho morto. Essa senhora magrinha e curva, cabelinho branco, da pele mais negra que já vi, foi logo mandando os netos pegar dois frangos no terreiro e colher ali ao lado umas bagas de quiabo. Com pouco ela torcia o pescoço de dois galináceos que, tão sem dor quanto vieram ao mundo, deste se foram.

― Não quero almoçar aqui ― disse o meu amigo o mais rapidamente que pôde, puxando-me de lado.

― Fique com fome ― devolvi, que não tenho saco pra fricote.

Apesar de minha deliberação, previ dificuldades. Meu amigo, que se vangloriava de que seu pai era homem tão refinado que descascava uma laranja com garfo e faca, fez cara feia quando viu a tapera em que moravam Pelé e os seus. Era dessas casas de estuque, coberta de sapé amarrado em trançados de madeira roliça, o chão de terra batida, no fogão à lenha umas panelas areadas com cinza já davam início ao que viria a ser o nosso almoço. Meu relógio começou a marcar o tempo da contrariedade.

A avó de Pelé, enquanto lavava os quiabos na bica, dizia-nos, e disse-nos várias vezes:

― Então vocês são os amigos do Pelezinho.

Parece que depois de se convencer afinal de que éramos os amigos de seu neto e encher-se de satisfação por isso, deu conta de que nossa presença a estorvava, e sugeriu:

― Ó, Pelé, leve os meninos para refrescar no poço. O almoço inda demora.

Mas não demorou que a avó de Pelé nos desvendasse o caminho de suas panelas. Na primeira, o arroz soltinho fumegava, como fumegava o angu de fubá de pedra numa tábua grande sobre o fogão de barro branco, e por último, os capões e o quiabo e seu molho e seu cheiro se revelaram quando a segunda panela foi aberta. O sorriso de gengivas da velhinha simpática convidava:

― Podem comer ― ela nos oferecia suas melhores dádivas.

Pelé e seus irmãos, como era costume da casa, esperavam que nós nos servíssemos para avançar ao fogão. Nunca vi tanta cortesia.

Não tenho como avaliar o que aconteceu a seguir. Ou melhor, tenho, mas não quero. Meu amigo, herdeiro de dotes de fineza incompreensíveis, quando a avó de Pelé lhe estendeu um prato de ágata, devolveu-lhe:

― Não tenho fome.

Foi como se atingissem a pobrezinha com uma pedrada. Ela só conseguia balbuciar:

― Mas por quê?

Pelé, entendendo a situação, avançou:

― Ele andou comendo demais no pomar, vó, comeu demais, perdeu a fome ― o meu bom amigo tentava remendar uma situação sem remendo.

Bem que poderia contar minha história sem a presença desse amigo ingrato. Mas quando decidi contá-la, entraram no caldo o preconceito e o escrúpulo inexplicável desse ser mimado. Sobrevive ainda a consoladora lembrança de que, a despeito de sua atitude inadequada, oferecendo-lhe minha indiferença, servi-me da comida e da alegria daquela casa até o limite do que fosse dado servir.  

Eis aí meu samburá proustiano, do qual saquei mais uma história. Que terminou em cocada e abraços e vários até breves. Que ainda vigem.

 

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