O romance desconexo

- Que esplêndida coincidência, encontrá-lo na nossa livraria!

Exuberante e espalhafatoso como sempre, meu amigo, o escritor Abadias Gomes, me pega na livraria onde eu futucava livros na estante giratória, me esmigalha num abraço de muitos braços e com voz de alto-falante se glorifica porejando felicidade:

- Acabo de chegar da Romênia, onde lancei o Romance Desconexo, como aconteceu em Moçambique, Portugal e Angola. Podia ser você no meu lugar.

Podia.

Haviam se passado cinco anos sem que eu visse Abadias, muito embora notícias sobre ele e o sucesso literário que fazia me chegassem às pencas, pela internet e facebook.

Nosso último encontro tinha sido nesta mesma livraria (a nossa livraria, como ele disse) quando eu viera entregar, para serem vendidos, dez exemplares de um livreto infantil de minha autoria, e Abadias me arrastou até uma mesinha reservada para os fregueses, onde disse acalorado:

- Trago um presente para você!

- Que presente? 

Ele mostrou o envelope, gordo e pesado, que atirou com destreza sobre a mesinha, em torno da qual sentamos.

- São os originais de um romance.

- Não leio originais, se é o que espera que eu faça. Dispenso seu presente de grego, repliquei seco.

- O presente não é meu. Sou apenas o portador, mero intermediário entre você e o autor dos originais, mas tive a curiosidade de lê-los. Recomendo que você também o faça. Estamos diante de uma obra formidável, quatrocentas e tantas páginas estupendas, e bateu com os dedos nervosos e finos no envelope gorducho como se estivesse dando tapinhas efusivos nas costas de um amigo mui querido. 

- Se você gostou, disse eu, dê sua opinião para o autor e me poupe o sacrifício da leitura, seja a obra formidável ou estupenda.

- Os originais que estou trazendo não são apenas para você ler, disse Abadias. São para você adotá-los como autor, a paga de uma dívida.

- Que conversa é esta, perguntei encarando-o com reservas.

- É a paga da dívida financeira que Friso Soares tem para com você, computados juros e correção monetária, segundo ele me afirmou.

- Aquele cretino quer pagar o que me deve concedendo-me a autoria de uma obra que ele escreveu? Essa é a proposta indecorosa que você tem a petulância de trazer?

- Apresento-a em nome dele, que se valeu de minha ajuda porque vocês cortaram relações, fato que Friso disse que entende e até perdoa. Você não está sabendo, mas ele sofre de um câncer terminal e não quer morrer sem acertar as contas com você.

- E acha que assim vai direto para o Céu, perguntei impiedoso.

- Não entrei neste mérito, disse Abadias. Mas entrei no mérito do romance. É obra revolucionária, que abala os padrões estruturais da moderna prosa de ficção em língua portuguesa. Lembra-se de O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, com o vanguardismo renovador na forma narrativa? Pois o Romance Desconexo é superior, assombrosamente superior, desdobrando-se numa tessitura desconexa sem perder o nexo, paradoxo em que reside a grandeza da obra, sua virtude máxima, qualidade extrema! Nem parece escrito por um cronista esportivo como é Friso Soares. Aconselho você a aceitar o presente para não se arrepender depois. Confie no meu faro. O cavalo está passando selado sob seu nariz, é montar e cavalgar. Não precisa nem meter-lhe as esporas que ele galopará abertamente, de crinas ao vento, rumo à glória literária.

- Olha, Abadias, eu não ficaria bem comigo mesmo se participasse de uma empulhação autoral como a que Friso está propondo. De há muito considero que o empréstimo que lhe fiz, em tempos em que éramos amigos, jamais será pago. É dívida consumada e perdida. Ele que morra em paz com a minha absolvição, pode lhe dizer. Neste corcel eu não monto nem cavalgo. 

- Se esta é a sua decisão, tudo bem, disse Abadias. Mas uma coisa vou fazer: como não tenho o escrúpulo moral que você tem, vou assumir a autoria do romance por conta de uma dívida não tão grande quanto a sua, mas que Friso também tem para comigo. Afinal, li os originais que você não quer ler, identifiquei o experimento inovador no estilo da obra, admito até que poderíamos assumir sua paternidade numa dupla parceria de credores, você pode se quiser ficar com a maior parte dos direitos autorais. O que me diz da chance que insisto em oferecer?

- Digo que minha decisão está tomada. Faça você o que quiser, não julgarei sua atitude. Ponha o Romance Desconexo no seu currículo de escritor, e boa sorte!

Foi assim que o Romance Desconexo, de Abadias Gomes, tornou-se uma obra clássica da literatura latino-americana e seu autor aclamado internacionalmente.      

- E você, meu caro amigo, continua escrevendo historinhas infantis? – perguntou Abadias dando-me um apressado abraço de despedida, porque tinha de pegar o avião para Buenos Aires, onde ia participar de uma noite de autógrafos, na universidade San Martin. E lá se foi tão esbaforido que não deve ter ouvido a resposta desolada que eu dei: - Continuo, sim...

 

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