À literatura

Veio de mansinho sem que ele a visse, e despejou a pergunta a tiracolo:

- Você é escritor, não é?

- Às vezes... – disse ele encarando-a.

Era uma mulher charmosa, na década dos quarenta de idade, senhora de um sorriso convincente. Trajava uma saia de bolinhas vermelhas e blusa branca, de mangas curtas, de onde emergiam dois braços torneados e compridos, bi-sensuais.  Trazia na mão a taça ainda cheia com o coquetel de pêssego e exalava sedução.

- Eu li um conto seu num livro sobre mulheres. Gostei muito. Meu nome é Zuleica.

Foi assim que se apresentou, erguendo a taça num brinde envolvente. Ele retribuiu a saudação com o copo de uísque, e disse:

- Foi um livro que não emplacou comercialmente como em regra não emplacam os livros de escritores capixabas.

- Uma pena! – ela disse. – Eu considero uma antologia de contos eróticos bem bolados, escritos por um grupo de autores homogêneos. Mas o seu foi o que me agradou mais.  

- Gentileza sua... – disse ele, empinando novamente o copo.

- Falo a verdade. Notei no seu conto uma influência de Guy de Maupassant, não sei se estou certa ou não. Maupassant foi um hábil criador de contos sobre o adultério, de preferência sobre o adultério feminino, como você também fez.  

Ele elogiou o acerto da observação que ela fez, mas não disse se tinha havido ou não influência de Maupassant no texto que escrevera.   

Por alguns instantes o diálogo travou nesse ponto morto.

Estavam no terraço de uma associação de moradores que comemorava aniversário de fundação. Ele fora até o local, deserto e noturno, para se isolar do estardalhaço musical que saturava o salão onde se aglomeravam associados e seus convidados, sua mulher dentre eles. Como diretora da associação, foi ela que insistiu para que a acompanhasse, o que fez a contragosto devido ao seu temperamento arredio e nada sociável.

- Você não gosta de festas, não é mesmo? Foi o que deduzi quando o vi aqui sozinho – destravou Zuleica a conversa interrompida. – Desculpe se o estou incomodando.

- Incômodo nenhum – respondeu ele, tolerante. 

Ela o acobertou com outro sorriso dadivoso, sinal de que havia percebido a consideração que estava recebendo da parte dele. Sentindo-se encorajada, avançou na abordagem:

- Eu sempre quis saber, de um escritor consagrado, se é difícil escrever um texto erótico. 

- Não sou um escritor consagrado – respondeu divertido.

- Para mim é – disse ela. – Mas não fuja à pergunta. É difícil? – insistiu olhando-o com malícia.

- É questão de tema e trabalho. O segundo depende do primeiro. Ambos caminham juntos – disse ele, dando-se conta de que falava telegraficamente.

Ela deu uma sorvida demorada no coquetel de pêssego, deslizou lentamente a ponta da língua pelos lábios umedecidos num movimento provocativo que a ele pareceu de fascínio depravado e disse:

- Se você tem o erotismo como tema, o que fica faltando é o trabalho de escrever?

- Erotismo é um tema muito vasto. Nele cabem muitas possibilidades. É preciso escolher uma e desfiá-la. Foi o que eu quis dizer – disse procurando ser mais preciso.

- Masoquismo e sadismo seriam duas possibilidades? Ou seriam apenas taras? – perguntou ela insinuante.

- Masoquismo e sadismo sempre são opções interessantes – concordou ele, procurando adivinhar aonde ela queria chegar.

- Eu as mencionei porque meu ex-marido era sadomasoquista. Dizem que a gente se acostuma com tudo na vida, mas não é verdade. Acabei me separando dele... – e pareceu a ele que o pensamento dela retrocedeu a algum abismo de suplício conjugal.  

- Sua franqueza me espanta... – observou.

- Por ter dito o que lhe disse? Pois fique sabendo, e pode aproveitar a minha experiência em sua literatura, que a lembrança de um ex-marido sadomasoquista uma mulher carrega pela vida toda. Ainda hoje fico arrepiada só de pensar no que passei – e para provar mostrou o braço torneado onde ele tentou, mas não viu arrepio nenhum.

- Repito que masoquismo e sadismo são alternativas possíveis. Mas o erotismo é uma barca de Noé de muitos bichos – e ele riu da própria frase.

- Bichos de toda ordem? – A indagação se fez acompanhar de um brilho sedutor nos olhos dela.

- Eu diria bichos de todas as desordens, não necessariamente taras. Talvez a expressão correta seja desvarios da sexualidade desvairada, embora isso possa soar com pedantismo.

- E como dos desvarios da sexualidade desvairada, segundo a sua definição intelectualizada, surge um tema apropriado para um texto erótico? – recarregou ela.  

- Comigo é sempre por acaso. Não sei se acontece com outros escritores – respondeu, depois de um momento de reflexão, dando asas à conversa que agora o motivava. 

- Um encontro casual entre um escritor e uma mulher, predispondo-os a confidências que eu chamaria de... intelectuais, pode ser o acaso a que você se refere?

Lembrando-se da língua dançarina sobre lábios dela, ele teve vontade de indagar, encontro casual ou provocado? Mas limitou-se a responder:

- Por que não? Em literatura tudo é tema.

- Quer dizer que este nosso encontro podia dar um conto? – perguntou numa oferta temática impudica. 

- Em princípio sim... - ele confirmou.

- Com princípio, meio e fim?

- Você vai me pedir para escrevê-lo? – interrogou ele em tom investigativo, sem dar a transparecer se estaria disposto a fazê-lo. 

- Vou mais longe: estou convidando-o a vivê-lo na realidade, antes de vertê-lo em ficção. É uma oferta que nenhum escritor consagrado ou não (ela acentuou a negativa) desprezaria. Vai perder a oportunidade da coautoria?

- Você sabe que eu sou casado? – ele a sondou numa atitude precavida.

- Claro que sei. Eu e sua mulher somos até conhecidas. Mas ela ficará fora da história. Será um conto somente nosso. Um conto inesquecível.

- Vai ser difícil porque ela já vem em nossa direção – disse ele. E brincou: - Portanto, literalmente, ela já está no conto.  

- Sobre o que você e Zuleica estão conversando tão animadamente? – perguntou quem chegava.

- Sobre a arte de escrever contos – antecipou-se Zuleica. – Estou querendo escrever um e quis ouvir a opinião de seu marido. Creio que aprovou a minha ideia ou será que me enganei?

- É uma boa sugestão para ser examinada com carinho... – respondeu ele impassível.   

- Ainda bem que a conversa é sobre contos – disse a mulher do escritor. – Em matéria de literatura eu estou por fora. Prefiro as novelas da TV Globo. Agora, querido, vamos para o salão de festa. Você está perdidão aqui neste terraço isolado, não é mesmo, Zuleica? 

E de braços engatados um no outro, marido e mulher se encaminharam para a zoeira musical de onde ele tinha fugido.

Numa saudação de despedida, Zuleica ergueu o cálice às costas do casal e brindou baixinho: - à literatura! – emborcando de um gole o resto do coquetel que nele havia.   

 

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