Fantasmas sobre a rua do Fogo

- Ô, meu digno! Venha cá...!

Pelo invocativo com que eu era chamado não podia ser outro senão ele a me laçar com sua voz tumular quando eu descia a ladeira Dom Fernando.

Volvi sobre os calcanhares e fui ao seu encontro, no alto do viaduto da Caramuru, pois até hoje não aprendi a me livrar das abordagens com que me castiga o fantasma do centro histórico de Vitória.

- Passando de fininho, hein?  - atacou-me com o hálito nauseabundo.          

- Juro que não o havia visto – disse eu, falando a verdade.

- Mas eu o divisei a tempo. E foi mesmo na hora porque preciso que você me ajude a explicar aqui para o meu bisavô o que é um bonde.

O seu pedido me causou tanta estranheza quanto a menção feita ao bisavô, que eu não conseguia ver ao seu lado.  

- É natural que você não o enxergue, num primeiro relance – disse o fantasma. - Faz tempo que ele faleceu e seu espectro está meio diluído. Mas tente pelo menos ver o aventalzinho de maçom com que ele foi enterrado... 

Fiz o esforço e com o esforço feito lobriguei um aventalzinho encardido balançando ao lado do fantasma, com o que deduzi tratar-se do seu ilustre bisavô. Com o que – repito -, me vi, numa tarde de sábado quieta e preguiçosa que caminhava para o ocaso, na companhia não de um, o que já era desagradável, mas de dois fantasmas no centro histórico de Vitória. 

- Este aventalzinho é o que virou relíquia em sua família? – arrisquei a indagação lembrando-me do que o fantasma me dissera num encontro anterior.

- Não, meu ínclito. Aquele foi o primeiro. Este aí é o último, de grão-mestre, orgulho do fim de vida do meu bisavô.

Enquanto me desculpava pelo meu equívoco, o fantasma voltou-se para o aventalzinho e disse:

- Este aqui, meu querido bivô, é um amigo por quem nutro um apreço incomensurável. Ele caiu do céu por ser a pessoa certa para lhe explicar o que é um bonde. Basta dizer que meu amigo é autor de um livro sobre os bondes de Vitória no qual compôs uma magnífica endecha sobre os trilhos que estão aos nossos pés, aqui no viaduto.

- Foi apenas um texto saudosista... – adiantei-me para podar os exageros do fantasma.

- Para mim foi um poema lamartineano – rebateu o fantasma. – Eu o sei de cor.

Sem me dar a chance de um pedido de clemência, o fantasma se pôs a declamar, como era de seu mau hábito e mau hálito, numa entonação cantante:

Sobrevive em Vitória a memória férrea dos trilhos dos bondes. São duas pernas de trilho cravadas no viaduto da Caramuru. Nunca saíram de lá, desde que ali foram pregadas – paralelas que terminam em pontas abertas o que é uma forma simbólica de não terminar. Mudas e frias, elas prolongam para além de si mesmas, a memória dos bondes. Curioso é que sobre esses trilhos jamais transitou bonde algum. Então, muito depois que os bondes se foram, percebe-se que a função desses trilhos jamais trilhados é a de testemunhar, como pegada petrificada na folha do tempo, a existência de um grande animal barulhento que se ligou ao cotidiano da cidade, enquanto o grande animal existiu e a cidade o soube amar.

Concluído o festivo declamatório, uma aragem fria perpassou pelo meu rosto, provocada pelo tímido abanar do aventalzinho. O fantasma me explicou:

- É o efeito das palmas de bivô. Ele apreciou a sonoridade lírica do seu poema, muito embora não o tenha entendido direito porque continua sem saber o que é um bonde.

- Não é um poema... – protestei constrangido.

O fantasma ignorou minha insatisfação e disse:

- O bivô morou na rua que havia aí embaixo antes da construção do viaduto que ele está conhecendo agora. A construção foi no governo Florentino Avidos, quando o bivô já tinha virado fantasma. Ao ver os trilhos cravados no viaduto ele desejou saber para o que serviam. Eu disse que eram para o bonde e meu querido bivô ficou na mesma. Em matéria de progresso de transporte o máximo que ele pegou foram os trens introduzidos no Brasil pelo barão de Mauá. 

Neste momento, elevou-se do aventalzinho uma agitação consonantal que o fantasma do centro histórico de Vitória traduziu para mim como a informação, dada pelo bisavô, de que ele fora amicíssimo do barão.

- O bivô tem agora certa dificuldade em  pronunciar o nome Mauá, mas deu para decifrar o que ele disse – acrescentou o seu intérprete.

- Foi um ilustre brasileiro – retruquei para demonstrar minha gentil concordância com o empolgado amigo do barão.  

- Eu falei muito para bivô sobre as mudanças sofridas por Vitória depois que ele morreu – continuou o fantasma. – Bivô reluta em aceitar a continuidade da história após a sua morte. No tempo dele, a ladeira Caramuru chamava-se rua do Fogo, que o povo, com o perdão da má palavra, denominava quebra-bunda.

Mais uma vibração se manifestou no aventalzinho, acompanhada de queixumes.

- O senhor seu bisavô está dizendo alguma coisa? – perguntei ao fantasma.

- Ele não gostou, por mera pudicícia, que eu mencionasse o cognome da rua. Quanto mais velho um fantasma, mais ermitão ele fica. É uma fatalidade da morte. Você vai descobrir um dia.

Sem dar importância ao seu vaticínio eu quis saber, por interesse pessoal de historiador:

- Seu bisavô testemunhou os combates contra os holandeses que deram nome à rua do Fogo em 1640?

- Não, meu digno! Quem teve este privilégio na minha família de longevos foi o meu tataravô. Eu creio até que ele disparou contra os invasores o seu arcabuz de boca de sino. Quanto ao meu bivô – prosseguiu o fantasma com suas reminiscências genealógicas –, ele nasceu em 1781 e seu passamento se deu em 1878. Foram longos 97 anos bem vividos, mas muito tempo depois da refrega com os holandeses que acometeram Vitória. O que não quer dizer que a rua do Fogo, em que ele morou, fosse muito diferente da que os flamengos tentaram galgar: uma ladeira escorregadia, máxime nos dias de chuva. Você sabe que ainda existe ali um resto de pedra daquela época? É um calombo indestrutível na calçada da Caramuru. Venha ver aqui de cima.

E o fantasma me acossou até a amurada do viaduto de onde me mostrou, espichando o dedo fantasmal, a elevação rochosa mal disfarçada em calçada.

- Aquela pedra mantém a tradição do quebra-bunda, se escorregarem nela... – disse o fantasma falando baixinho para que seu bisavô não ouvisse a expressão indecorosa. - Quem é que sabe que ali ainda tem uma lombada da rua do Fogo? Responda: Quem? Quem?

- Somente você... – disse eu para satisfazer a empáfia do perguntador. – E vejo que você mata a cobra e mostra a pedra...

O fantasma deu uma gargalhada assombrassônica, apreciando a minha piada, e confirmou:

- Oui, mon ami. Seulement moi.    

Nesse momento, um novo estremecimento do avental ao nosso lado fez com que o fantasma do centro de Vitória lhe desse ouvido, se é que entendem o que quero dizer.  

- O bivô está esperando que você explique o que é um bonde... – transmitiu-me o fantasma que captara o sentido do tremor irritado.

Acuado pelo pedido, dei a explicação ao meu alcance sem saber se estava sendo entendido pelo aventalzinho resmungão. A comparação que fiz foi entre um bonde e um vagão ferroviário, com as adaptações cabíveis. Difícil, porém, foi explicar o que era a eletricidade que movia o bonde. Ao fim e ao cabo parece que obtive êxito a julgar pelos agradecimentos que me transmitiu o fantasma, interpretando os roufenhos sonidos partidos do bisavô.

- Bem, meu digno – disse ele -, o bivô está ansioso para visitar a Santa Casa de Misericórdia, não só porque foi lá que ele morreu quando era provedor, o que de certo modo é um retorno nostálgico ao lugar do seu último suspiro, mas também por considerar a Santa Casa uma das maiores realizações do governador Francisco Alberto Rubim, de quem era admirador declarado.

- Seu bisavô foi sepultado no cemitério da Santa Casa? – fiz a pergunta esquecendo-me de que, ao fazê-la, retardava a nossa despedida.

- Absolutamente! – silabou o fantasma. – Por desejo lavrado em declaração do próprio punho ele foi enterrado no cemitério do São Francisco. Ao contrário de mim, peroá de corpo e alma da irmandade do Rosário (hoje sou apenas de alma), o bivô foi um caramuru fanático. Quando outro dia eu lhe informei que não mais existe a antiga e tradicional rivalidade entre os dois grupos, ele desabafou na hora: - Então Vitória acabou! – E, desconsolado, encharcou de lágrimas o aventalzinho de grão-mestre.

Foi o fantasma falar no avental e dele nos veio outro fremir excitado anunciando que a paciência do vetusto bisavô havia se esgotado.

- Está vendo, meu ínclito? Bivô está vibrando para partir – disse o fantasma. - Você quer nos dar a honra da sua companhia?  

Dispensei-me do convite alegando compromissos urgentíssimos na tarde que se esgarçava para o fim. O fantasma lamentou minha evasiva e se fez ao espaço junto do aventalzinho que materializava aos meus olhos o seu querido bisavô, naquele bizarro encontro que tivemos sobre a ex-Rua do Fogo.

 

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