Sobre crônicas

Uma crônica sonhou que encontrou outra crônica que escrevia uma crônica. Até aí nada demais. Em matéria de sonho tudo é possível. Os antigos tinham os seus e recorriam às sibilas para interpretá-los conforme conta a história. 

Mas o que vai dar do sonho da crônica que encontrou outra crônica que escrevia uma crônica é cedo para saber. É preciso dar rédeas à crônica, no caso, esta crônica, para que ela diga o que tem a dizer ainda que pouco seja ou nada valha. 

É fora de dúvida, porém, que o sonho da crônica que encontrou a crônica cronista, por estar dentro da lógica dos sonhos, não merece ser contestado nem por mim nem por meus raros leitores. Aceitemos o sonho da crônica com a naturalidade com que eles ocorrem e da forma como ocorrem.  

E para que a crônica tenha andamento (e novamente se trata desta crônica em seu quarto parágrafo) o passo seguinte é revelar o que a crônica escritora escrevia no sonho, que era o seguinte:

Eu ia caminhando despreocupadamente pela praça das grandes palmeiras tentando adivinhar quantas delas ali havia (são dez e não onze como eu pensava) quando ouvi o chamado:

- Psiu, por favor, senhora crônica. Dê uma chegadinha até aqui!

Quem me psilvava era uma senhora de cabelos brancos presos em coque no alto da cabeça, metida num vestido preto abotoado do pescoço à cintura, com um xale cinzento e gasto jogado sobre os ombros.

Aproximei-me do banco em que a velha senhora estava pachorrentamente sentada.

- Pois não?

- Vejo que enquanto você caminha pela praça contando as grandes palmeiras que nela existem está acumulando mentalmente matéria para escrever uma crônica, não é verdade?

- Com sinceridade, minha senhora, eu não havia notado que em minha despreocupada caminhada pela praça das grandes palmeiras estivesse colhendo motivos para elaboração de uma crônica – disse eu, como crônica que tinha sido interrogada.

- Mas eu sei que é assim – afirmou a velha senhora – Por certo que agora, enquanto você caminha pela praça contando as grandes palmeiras que nela existem ainda não se apercebeu do potencial que a sua despreocupada caminhada pode proporcionar como motivo de crônica. Mas daqui onde estou, vendo-a passar, pude atinar com o que você ainda não atinou: que o seu displicente passeio acabará redundado em crônica, muito embora a crônica que de sua caminhada vai nascer ainda não tenha passado pela sua cabeça, entendeu?

- Estou querendo entender – disse eu – Mas por que a senhora sabe disso?

- Por que sei? – e a velha senhora concedeu-me um sorriso de superioridade – Não se espante com o que vou dizer, minha filha. Mas eu sei por que eu sou a crônica que você ainda vai escrever!

- A senhora é a crônica que eu ainda vou escrever da minha despreocupada caminhada na praça das grandes palmeiras? Isso não soa insensato?

- Não há insensatez nos sonhos, minha filha. Não se esqueça de que estamos num sonho de uma crônica que encontrou outra crônica - que é você -, que estava escrevendo uma crônica - que sou eu. Tudo muito simples.

- Nem tanto – disse-lhe eu – Porque no sonho a senhora já estava sendo escrita enquanto que eu, em minha caminhada pela praça contando as grandes palmeiras que nela existem nem sequer pensava em escrevê-la, entende a diferença?  Por isso não acho que seja simples assim.

Novamente a velha senhora deu um risinho simpático e superior antes de falar:

- Querida crônica que ainda vai me escrever, será que você não aprendeu que nos sonhos não existem regras matemáticas? A trama deles é sinuosa, entrecortada, mutável, saltitante, às vezes até recorrente ou enroscada. A lógica dos sonhos é a sua falta de lógica. A crônica que no sonho vai ser escrita por você, sem que você o saiba em sua despreocupada caminhada pela praça, já sou eu, que aqui me encontro pronta e acabada, ainda que você não o imaginasse até eu chamá-la para dizer o que estou lhe dizendo. São os mistérios dos sonhos, minha filha, que desafiam as interpretações dos adivinhos desde a remota antiguidade.

No ponto em que nossa conversa havia chegado (para falar a verdade bem antes até) qualquer criatura de bom senso deveria dar o assunto por encerrado e caído fora. Mas, crônica que sou, decidi alimentar a conversa com a velha senhora para além do bom senso como costuma acontecer na nebulosa dos sonhos. Foi o que fiz. 

- Diante de mim tenho, pois, a crônica que ainda vou escrever, conforme a senhora está dizendo?

- Não é bem assim – ressalvou a anciã com o sorriso de sempre – O que você tem a sua frente é a crônica que, no sonho, você vai escrever, embora esteja eu aqui, pronta e acabada, antes de você me concluir. E sendo eu essa crônica já elaborada, mas ainda em elaboração no sonho em que você a está escrevendo, resolvi chamá-la para lhe dizer, antes de você me acabar por completo, que eu serei a sua crônica tal como sou, e tal como estou à sua frente, ainda que possa parecer estranho, ou nem lhe agradar muito que seja eu o que sou, com minha roupa antiga, meus cabelos brancos, meu xale cinzento e gasto jogado sobre os ombros, enfim, esta velha e brincalhona figura que você está vendo.

- Longe de mim desmerecê-la, minha senhora. Não se trata disso. Mesmo porque se a senhora é a crônica que eu vou escrever não serei eu, crônica autora, que a vai desvalorizar - disse-lhe eu procurando espanar do seu ânimo a sensação de baixa estima que minhas palavras pudessem ter lhe  causado.

- Fico feliz com a sua explicação – disse a senhora do xale cinzento – Principalmente porque eu vi que você estava receosa de que a crônica que você vai escrever, mas que no sonho já está escrevendo, tivesse a minha cara, isto é, fosse igualzinha ao que eu sou – anacrônica!

- Agora, quem ficou atrapalhada fui eu. Se a senhora diz que é a crônica que eu vou escrever, como é que a crônica que será escrita por mim não será igualzinha à senhora?

- É porque você entendeu minhas palavras ao pé da letra. O que eu quis dizer é que eu sou a sua crônica porque simbolizo todas as crônicas retoricamente falando, sem que todas as crônicas tenham de ser necessariamente iguais a mim. Ou seja: eu sou a Crônica como gênero literário, se é que posso me conceder esta honra.

- Ora, graças – disse-lhe eu – Porque quando a senhora me disse que a crônica que eu vou escrever seria igual à senhora, imaginei, assustada, que minha crônica estivesse condenada a ser uma crônica à moda de Humberto de Campos ou Coelho Neto. Sem querer ofender e com o devido respeito.

- O seu receio é compreensível, minha filha, porém, descabido.

- Descabido por quê?

- Basta que você leia a crônica que no sonho você já está escrevendo para ver que ela não se parece com nenhuma outra que tenha sido escrita até hoje. Embora seja um pouco confusa, exigindo do leitor atenção redobrada para não ser perder nos meandros das suas idas e vindas, o que não se coaduna com a leveza que por tradição e estilo devem ter as crônicas, a sua não tem similar. Esta garantia eu lhe dou por ser eu a sua crônica, está entendendo? E já que eu disse tudo o que tinha a dizer, pode voltar à sua despreocupada caminhada pela praça das grandes palmeiras – concluiu a velha senhora do xale cinzento.

Sentindo-me despachada sem outras palavras, retornei ao ponto em que tudo começou: o sonho da crônica que estava sonhando que encontrou outra crônica que escrevia uma crônica que era a velha senhora com quem eu acabara de ter um encontro, no mínimo onírico, com o que termina a crônica sobre crônicas fazendo do seu fim o seu começo.

 

Leia outros textos