Estava eu lendo Borges

Estava eu lendo Borges quando vi a mancha na unha. Uma mancha diminuta, branquinha, que literariamente comparo a uma gaivota cujo voo está preso na unha do meu polegar  apoiado sobre a página do Prólogo de Jorge Luis Borges, no livro de sua autoria O Informe de Brodie (Porto Alegre/Rio de Janeiro, Editora Globo, 1983, 2ªedição, brochura, páginas 5 a 8).

A obra me foi emprestada pelo Reinaldo. Estava destinada a Ivan Borgo, mas Ivan não apareceu na Livraria Logos, no sábado, e fiquei com o exemplar em tradução de Hermilo Borba Filho.

Foi, portanto, no correr da leitura que vi a pintinha branca. Mas vi revendo porque quando a vi pela primeira vez, semanas antes, ela ainda estava colada à cutícula, no fundo do seu repositório. Era então uma manchinha nascente que até me enganou parecendo uma pequena marca de tinta branca (nos meus tempos de menino chamavam-se mentiras a tais sinais).

Falo, porém, a verdade: era mesmo uma pinta partindo das suas origens para uma longa caminhada na medida em que a unha fosse crescendo, crescendo bem devagar como crescem as unhas, arrastando a manchinha consigo até poder ser eliminada pelo trinque do meu cortador metálico.

Quando seria isso?

Pela distância já percorrida do fundo da cutícula ao meio da unha, calculei que a mancha ainda teria cerca de dois meses de vida, se tanto.

“O exercício das letras é um mistério”, leio a frase de Borges na barra do meu polegar.

A marquinha de pássaro encravada na unha que confirme ou conteste a profundidade do mestre, penso cá do meu lado. “A imaginação pode agir assim com mais liberdade”, me sussurra novamente Borges.

E age.

Tocada pelo sopro da frase no dedo que se intrometeu no texto que eu estava lendo, liberta-se a gaivotinha presa no terminal do meu corpo, e alça voo. Em volteios impensáveis e nervosos sobe até a altura do meu nariz quase me provocando um atchim literário, rodopia diante dos meus olhos desequilibrada por uma rajada de vento que vem da janela entreaberta, recupera-se num malabarismo de trapezista e mergulha veloz para retornar ao ninho de onde partira.

Mas como se tivesse perdido o rumo do milagre vivido na amplitude da sua aventura fantástica, a gaivota pousa saltitante, ainda meio tonta e assustada, sobre várias passagens de Borges, levando consigo os meus olhos numa leitura de rastro: “meus contos, como os d’As Mil e Uma Noites, pretendem distrair ou comover e não persuadir”... “cada linguagem é uma tradição, cada palavra um símbolo compartilhado”... “preferi, em suma, a preparação de uma expectativa à de um assombro”.

Apiedo-me, então, da frágil criaturinha no esforço passarinho de demandar o domicílio perdido. Sentindo que é hora de intervir, intervenho: dou o dedo polegar à avezinha doidivanas para que se acomode outra vez no meio da unha, de onde não deveria ter saído.

Ela parece agradecida para com o gesto que tive e se deixa ficar onde antes estava, inofensiva e branquinha, tal e qual as mentiras do meu tempo de menino.

E se por acaso alguém achar que são insignificantes e pueris as carochinhas que ando escrevendo respondo que pouco me importa. Na idade a que cheguei, resigno-me em ser o Luiz que eu sou como, em relação a si próprio, escreveu Borges que eu estava lendo...

 

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