Com um cravo nos dentes

Pesco nos dentes um cravo escondido num bocado de geleia de banana. Revolvo-o de leve na boca, sem apertá-lo ou feri-lo, até porque convém ser cuidadoso com os dentes que me restam para a serventia dos anos que possam me sobrar pela frente. Assim, vagarosamente o exploro com a língua e com os lábios, limpando-o bem limpinho da massa de doce que nele se gruda para deixá-lo nu, nuinho da silva e à vontade em minha boca.

Ainda não o vi porque não lhe pus os olhos, mas já deu para sentir, porque o estou pesquisando meticulosamente em toda a sua consistência, que é um cravo pequenino, um pequenino cravo de apenas um centímetro, um miúdo gravetinho que repousa sobre minhas papilas afetadas agora por um gosto sutil que o cravinho deixa escapar, mas ainda com usurice judia. 

Ora, pois, quer dizer então que este toquinho de pau semi-adormecido, colhido um dia a um arbusto (deve vir de um arbusto certamente) cujo nome eu ignoro (será uma craveira?) e que ficou escondido como bicho do mato por longo tempo na geleia caseira que estou comendo ainda não morreu? Bastou que meus dentes fossilizados o capturassem como pescadores de tainhas perto da aposentadoria, e que sobre o cravinho pescado eu passasse a língua e a repassasse em idas e vindas para que ele, o triste e adormecido gravetinho recendesse como um cravo de defunto, mas nem tanto?

- Ainda vos conservais em atividade, ó precioso e nobre condimento? – puxo conversa tratando-o com honraria para conhecer a fundo suas prodigalidades de tempero.  

Mas como dele não recebo nem simpatia nem resposta, fechado que está no seu silêncio de pau, é preciso que continue a testá-lo para conhecê-lo melhor.

Por isso o tenho agora preso no bico dos lábios, investigando-o embaixo do nariz. Na posição propícia a que o conduzi pretendo aspirá-lo fortemente. E o faço em demanda de um aroma que me encha as narinas do prazer odorífero que deve exalar um cravo premido na circunstância a que este foi levado: a de desprender olores forçados para o deleite de um septo nasal ávido e exigente. Ou será que são as minhas células olfativas, cansadas de guerra, que não mais conseguem captar os cheiros do mundo?

Concedo-lhe o benefício da dúvida e faço novas tentativas de nariz apurado. 

Mas da parte do cravo o resultado é zero. Pelas minhas narinas ansiosas o renitente cravinho não informa ao que veio, nem por que estava tanto tempo se fingindo de morto numa geleia há várias semanas esquecida no frio polar da minha geladeira.

Essa indiferença me irrita e atiro-lhe uma declaração de guerra:

- Ide pagar caro pelo vosso alheamento, ó casmurro condimento de uma figa!

E já pagou porque acabo de lhe dar uma rápida mordidinha, sem exagero na dose porque não o quero estripar de um estalo. Foi uma mordidinha começo de tortura, um aviso preventivo e malvado, mas que guarda em si um forte poder de pressão persuasória por se tratar, afinal de contas, de uma apalpada de dentes com a qual não se deve brincar. Que, aliás, teve êxito, como era por mim esperado.

Sentindo-se mordiscado com perigo o cravinho deu o ar da sua graça e acentuou, abruptamente, dentro de minha boca a intensidade especiosa de sua essência vegetal.

Agora, sim, estamos nos entendendo, digo-lhe com satisfação de carrasco. 

Desejando que o nosso entendimento seja o mais completo e harmonioso possível explico-lhe, quase pedindo desculpas pelo mau comportamento que lhe vinha dedicando, que como até hoje eu nunca me detivera sobre um cravo pescado num doce de banana, ou em qualquer outro doce, não só eu queria conhecer a eficácia de suas propriedades conservativas e cheirosas no interior de uma substância comestível, como também desejava verificar quanto tempo seus eflúvios energéticos se mantêm vivazes. E se os meus contados leitores quiserem também saber a conclusão a que cheguei nesta pesquisa gustativa, declaro que agora compreendo claramente a motivação que levou os portugueses ao comércio das especiarias, por mares nunca dantes navegados.    

Com tão rebuscada conclusão posso me dar à curiosidade final de retirar o cravo da boca para conhecê-lo pessoalmente. E tendo-o preso e solitário na ponta dos dedos, propago aos ventos a admiração que me invade diante de sua frágil anatomia:

- Como sois minúsculo e, no entanto, tão potente, ó incrível e inesperado cravo da Índia que me veio aos dentes num caseiro doce de banana!  

 

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