Os longos lamentos dos violinos de outrora

- Você acha que vai dar certo o retorno de Ronaldo, o Fenômeno, ao futebol brasileiro?

Eu e meu amigo íamos almoçar num restaurante da rua Sete quando ele me fez a pergunta. Foi quando deitei os olhos na senhora que caminhava à minha frente.  Vestia um terninho branco, calçava sapatos que combinavam com a bolsa que levava presa no ombro pela alça artisticamente trabalhada, e seu andar era seguro e tranquilo.

Como poderia ser definida esta inesperada e elegante senhora que ao meio do dia me chama a atenção e está ao alcance do meu braço, mas que nem sequer me mostra o seu rosto?

Distinta!

Uma senhora distinta, eis a qualificação adequada, mas ainda insuficiente para retratá-la em toda a sua postura. Porque faltou dizer que também era outonal.

Portanto, distinta e outonal era aquela que caminhava à minha frente com seus passos tranquilos e seguros, sem adivinhar que eu a bisbilhotava por trás, sem se dar conta de que eu quase lhe pisava os alvos calcanhares que pespontavam dos sapatos de saltinho médio. Uma senhora toda igual a si mesma, como diria o autor de A ceia dominicana. E eu, todo igual a mim mesmo, sem tirar nem pôr, ali em suas pegadas avaliando-a à queima-roupa pela retaguarda dela mesma, sem dar margem à legítima defesa.

Havia, porém, um pequeno senão: talvez o seu cabelo fosse negro demais devido ao excesso de tinta. Ou talvez parecesse mais negro pelo contraste com o branco do terninho de bom e caprichado feitio. 

Mas força é reconhecer que era um cabelo bem aparado que chegava aos ombros na medida certa. Maduros cabelos de mulher madura, disfarçados de preto para esconder o avanço da idade, nem tão avançada assim a ponto de comprometer o agradável quadro que na minha frente avançava. Será que o seu destino é o restaurante para onde vamos eu e o meu amigo preocupado com Ronaldo, o Fenômeno? – pensei seguindo ao embalo das suas pisadas. 

Não, não era.

Com mais dois ou três andamentos, ela quebrou à direita e embicou para a rua Graciano Neves, deixando-me seguir na direção à esquerda. E, no entanto, com algumas passadas a mais (mas só penso nisso agora) eu poderia ter-lhe cortado a passagem para, com o necessário respeito com que um senhor também em idade outonal deve abordar uma estranha na rua, dizer-lhe amistoso:

“A senhora me permite?” – (é assim que me vejo abrindo a conversa). 

Mas... me permite o quê? Se me atrevesse a lhe pedir permissão tinha que estar apto a lhe declarar para quê.

Arquitetemos hipóteses: Mo permite que eu saiba o seu nome? Mo permite que eu peça o seu telefone? Mo permite que eu a convide para almoçar, claro que sem a companhia do meu amigo interessado em Ronaldo, o Fenômeno? Mo permite dizer que só em a ver pelas costas, andando na minha frente, tomei-me de simpatia pela sua pessoa? (Ou seria melhor dizer encantamento?) Mo permite, enfim, a mim que sou tão outonal quanto a senhora (não, esta não seria uma boa frase de entrada, mas já que está dita, aí fica) mo permite dizer, como ia dizendo, que aqui onde estamos, neste joelho de esquina movimentada do centro de Vitória, existiu antigamente um teatro chamado Melpômene, que ardeu em chamas por que foi construído de pinho de riga? Mo permite dizer ainda que nas sessões de cinema mudo do Melpômene uma orquestra de músicos vestidos a caráter enternecia os assistentes com os longos lamentos dos violinos de outrora?  

O delírio a que me entrego mostra que fiz bem em deixar que a senhora se fosse, que para todo o sempre se fosse sem que nem sequer eu pudesse ver o seu rosto.

- Não, eu não acredito que o retorno de Ronaldo, o Fenômeno, ao futebol brasileiro possa dar certo. O tempo dele passou... - respondi ao meu amigo.       

 

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